Um livro com 50 poemas de Drummond e o futuro

Texto de Toinho Castro


A gente não compra um livro digital, um e-book, como se diz, a gente compra o direito de acessá-lo enquanto ele estiver disponível. O mesmo vale para o streaming de música ou vídeo. Faço essa reflexão porque ontem fui escutar um disco que gosto muito numa plataforma de streaming que eu assino e não pude encontrá-lo. Não está mais disponível. Possivelmente questões de direitos do artista, da gravadora, da editora das músicas…. vai saber. Bem sei que o sagrado cinema sempre foi assim, a gente assistia ao filme enquanto estava sendo exibido no circuito de salas de exibição. Mas os VHS, os DVDs, e outros formatos de distribuição física de conteúdos, foram nos ensinando que poderíamos guardar os filmes como guardávamos os livros.
Somos uns mal-acostumados.

Com comércio de e-book esse cenário está em transformação e nossa relação com o livro em cheque. Para ilustrar, recentemente a Microsoft encerrou as atividades de sua loja de e-books e todos os livros “comprados” foram excluídos. Os leitores desavisados ganharam vale-compras para serem trocados por outros produtos. De repente aquele livro que você comprou, e nem chegou a terminar a leitura, pode se transformar num mouse.

Escrevo isso enquanto, encerrado em certa nostalgia, olho para um livro que comprei ontem na Banca do Olivar, uma seleção de poemas de Carlos Drummond de Andrade, escolhidos pelo próprio poeta para uma coleção chamada Cadernos de Cultura. O livro chama-se 50 poemas escolhidos pelo autor, tem 62 anos de idade e passou por pessoas, lugares, dias, e chegou a mim. Rilda Coelho dos Santos o comprou numa tarde ou manhã de um perdido 9 de agosto de 1957. Suas páginas estão cheias de anotações, numa letra que não parece ser a de Rilda, comparando com sua assinatura na folha de rosto. É a letra, precisa e regular, de alguém a quem esse livro pertenceu depois de Rilda, alguém que aparentemente precisou dele para algum trabalho do colégio ou faculdade, alguém que leu os poemas com um olhar criterioso, diferente de quem lê como quem passeia, como quem encontra alguém. Quem quer que tenha feito essas anotações se debruçou sobre esse livro como hoje me debruço. O que me leva a perguntar quantos somos os que carregaram esse livro. Quem somos e por onde andamos?

Nesses 62 anos que se passaram, Rilda bem pode estar viva ainda. Assim como quem escreveu todas essas notas miúdas, interpretando Drummond, sua escrita, seus versos. Drummond que se foi, que morreu em 17 de agosto de 1987, trinta anos quase precisos depois que esse livro foi comprado por Rilda. Drummond que não imaginou seu livro, com mais de 60 anos, aguardando, como um imortal, um novo leitor passar desprevenido pela banca do Olivar e descobri-lo e carregá-lo numa nova e inesperada jornada de leitura. No Pêndulo de Foucault, de Umberto Eco, li sobre esse ponto fixo, em torno do qual tudo gira. Imaginei esse livro do Drummond como esse ponto, entorno do qual giramos Rilda, eu e tantos que o seguraram nas mãos, fizeram anotações e enveredaram pela noite escura percorrendo suas páginas.

Eu sabia que a Terra estava rodando, e eu com ela, e Saint-Martindes-Champs e Paris inteira comigo, e juntos rodávamos sob o Pêndulo que na realidade não mudava jamais a direção do próprio plano, porque lá em cima, de onde pendia, e ao longo do infinito prolongamento ideal do fio, para o alto em direção às mais remotas galáxias estava, imóvel por toda a eternidade, o Ponto Fixo.

A Terra girava, mas o lugar onde o fio estava ancorado era o único ponto fixo do universo.

O Pêndulo de Foucault, de Umberto Eco



Carrego por aí meu Kindle, sabendo que preciso mantê-lo carregado ou não terei livros. torcendo para a Amazon não mudar de ideia e fazer como a Microsoft. Talvez em 60 anos meu Kindle esteja largado numa feira de troca-toca, sem função, como curiosidade de uma certa época, de uma certa indústria, que prosperou e sucumbiu, como quase tudo na vida. É bem possível que algum curioso que o pega nas mãos não consiga relacioná-lo à ideia de livros ou leitura. Talvez na mesma feira, na banca de um futuro Olivar, possa ser encontrado meu livro com 50 poemas de Drummond, carregando o nome de Rilda, a data de 9 de agosto de 1957, as anotações do desconhecido ou desconhecida que vasculhou os poemas, talvez com uma pequena anotação minha para o futuro… quem sabe alguém nesse mundo incerto e adivinhado, possa folhear as suas páginas frágeis e amarelas e nele decifre uma vontade de sobreviver a tudo e a todos nós.