A poesia de Milena Martins Moura

Sim, a poesia de Milena Martins Moura está na Kuruma’tá, na última segunda-feira do ano. E é com a poesia de Milena que encerramos 2020 e preparamos nossos corações e mentes para 2021! Uma poesia vigorosa e precisa, em que cada verso adensa o outro. Que coisa boa ter essa poesia aqui com a gente, no fim desse ano estranho.

Sem mais, deixo vocês com o universo particular de Milena Martins Moura, enquanto escoam os dias e horas de 2020.

1.

É só um rosto com veias aparentes.
Com medos pulsando na testa.
Eu sou um rosto
E um corpo preso a ele,
Com músculos que tremem
E um cobertor de pele
E pelos.
Eu tenho roxos que não sei como.
E dores que não sei como.
Meus pés já acordam doídos de andar.
Eu sou um rosto.
Com dentes em demasia.
Eu sou também os dentes e o que mordem
Para manter meu status
De coisa viva.
Eu sou um rosto pálido
Manchado de verde escuro
Que hoje não quer sorrir.
 

2.

É dar corda
Pra me enforcar
Mas eu ainda me levanto
Com gritos no ouvido.
Você precisa costurar meus braços
Antes que me esqueça.
Eu ainda escovo os dentes
Com gritos no ouvido.
Você precisa me bordar os olhos
Antes que me esqueça.
Eu ainda como torradas
Com gritos no ouvido.
Você precisa rechear meu tronco e me fechar as costas
Antes que me esqueça.
Antes que esqueça a minha forma
E a história
Que eu assombrei na sua noite.
Me brote de azul nessa folha
Feita apenas para me servir de berço.
Faça-me viva
Assim, bem cedo,
Que é quando convém nascer.
Depois você pode esquecer a louça na pia
E o sentido de existir em sofrimento.
Mas primeiro eu quero sujar esse quarto
Com o sangue do meu nascimento.
É dar corda
Pra me enforcar
Mas eu ainda escrevo
Com gritos no ouvido.
 

3.

Alguém precisa dizer pra essa criança
Parar de cavar.
O Japão só está ao alcance das mãos
De quem tem grana
Pra comprar passagem.
Melhor avisar também,
Bem cedo,
De menino,
Que ser astronauta é difícil,
Principalmente quando se nasce no Brasil
De mãe pobre
Sem saber inglês.
Aliás, diga-se a verdade,
Bem pouca gente nesse mundo
Realiza sonho.
Deixe que ele saiba antes que cresça,
Pra doer menos.
Na adulteza, todos os dias
São bem parecidos,
Mesmo ônibus, mesma multidão,
Mesma pressa, mesmas tarefas.
No aniversário só tem bolo
Se comprar
E, se cai na semana,
Tem esporro de chefe
E almoço protocolar da firma.
Espera-se loucamente pelo sábado
E nele lava-se a roupa e limpa-se a casa.
E o fim de semana dura dois minutos
E um porre de vinho barato.
Pisca-se o olho e passam dez anos.
Ganha-se ruga, peito caído e doença.
E as lendas mudam de papai noel pra corrente alarmista.
Os filhos dão despesa e um pouco de desgosto
Como vingança por os termos tacado aqui
À revelia.
E em dois dias já estão fora de casa,
Passando a diante a maldição.
Basicamente, Carmen, pare essa criança agora.
Se continuar nessa cavação,
Capaz de descobrir que o Pitoco
Nunca foi morar em fazenda.
 

4.

A poesia
Abandonei atrás de um móvel pesado
Numa empresa pesada
Em um dia ruim.
Larguei de lado também
Sonhos, pessoas e quilos.
A qualidade de não tremer de medo
Por estar no mundo
E ao som do meu nome.
E, é claro,
Um corpo jovem e sem dores.
E a poesia ficou jogada no escuro
Sem quem a cuidasse.
Não foi sempre assim.
Houve dia de deixar
O poema
À luz solar direta
Em ambiente arejado.
A poesia a que me jogo agora
Não é aquela
De concreto velho
E livro de sebo
Riscado por outros
Que vieram antes de mim.
Aquela morreu sufocada
Pela necessidade evolutiva
Do alimento
Que obriga a vende a vida.
A poesia a que me entrego
Tem lembranças demais,
Como matriarca de família grande
À beira da morte.
Ela me trouxe hoje
O cheiro do concreto
Misturado a um perfume azul
Em dedos de gente querida.
Ela hoje me fez lamentar
Que tempo não se possa
Estocar para o inverno,
Como cereais num galpão.
Para comer
Quando o estômago
Roncar de velho.
 

5.

Eu escrevo poesia
Desde 1996.
Sim, eu era só uma criança.
Que fazia escolhas ruins.
Cortavam as minhas asas
Para servir no jantar.
Doía.
E, passiva, eu dava o meu futuro
Em sacrifício.
Éramos pobres.
Não se sonha com fome.
Um dia as asas não cresceram.
Ninguém estava esperando.
Eu havia desistido.
Só me sobraram a caneta e o papel
E, pra aplacar a fome,
Eu escrevi sobre roseiras
E muitas outras coisas que eu nunca tinha visto.
Foi preciso caçar outro alimento.
Pela palavra eu possuí a minha carne
E desde então ela é só minha
Pra morder.

Milena Martins Moura é mestre em literatura brasileira pela Uerj e tradutora. Autora dos livros Promessa Vazia (2011) e Os Oráculos dos meus Óculos (2014). É também cantora e compositora, autora do EP Flamboyant (2018), disponível para streaming. Publica poemas, fotografias e pinturas no perfil de Instagram @oraculos_dos_oculos.


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