Texto de Toinho Castro
Dias atrás uma amiga, Bárbara Porto, postou no Instagram um stories com uma frase do poeta americano Lawrence Ferlinghetti. Aquilo comoveu-me um tanto, como sempre um tanto me comove falar do poeta. Ela acabara de conhecê-lo e conversamos sobre minha própria descoberta de Ferlinghetti, lá pelos anos 1980, por conta da editora Brasiliense e sua coleção Circo de Letras, que me apresentou sua obra no livro Vida sem fim, de 1984.
A coletânea apresenta poemas de nove livros, num panorama de sua obre de 1955 a 1980, traduzidos por Nelson Ascher, Paulo Leminki, Marcos A. P. Ribeiro e Paulo Henriques Britto. O livro é uma aula maravilhosa de tradução (a edição é bilíngue) e do fazer poético. Ler e escrever não são operações mecânica de arrumação de alfabetos e ideias. São operações do espírito, e seu aprendizado depende de muitos ensinamentos e professores. Ferlinghetti me foi um desses professores que passaram pela minha e me ensinaram a ler, a escrever.
Ontem a mesma amiga, Bárbara, me mandou uma mensagem. O poeta havia morrido, na segunda passada, aos 101 anos. Havíamos dias antes comentado justamente sua longevidade, e o fato que no mês que vem faria 102 anos. A notícia, mais uma vez, me comoveu, pois passei aquele dia com o livro, Vida sem fim, para lá e para cá, lendo trechos, me surpreendendo de novo com tantos versos e poemas. Pensei que o poeta havia me chamado pra junto dele, ele que esteve todos esses anos, desde que passei na Livro 7 e comprei meu exemplar, junto a mim, sem nunca me abandonar.
Lawrence Ferlinghetti marcou a poesia americana, revelou poetas como Allen Ginsberg e seu Uivo, criou uma livraria chamada City Lights, que nome lindo, né?! Iluminou também gerações de poetas tempo e mundo afora. No meu canto, lá no Recife, na Imbiribeira, eu pude ler Lawrence Ferlinghetti, lá pelos meus 18 anos. Que impacto, que revelação de tantas coisas. Poetas assim descortinam ainda mais poetas e livros. Por conta dele , cheguei a Ginsberg e Kerouac, Antonio Bivar, Claudio Willer, Pound (e aí ele se encontrava com os concretos Augusto e Haroldo de Campos).
Chegar como poeta à vida de um jovem de 18 anos é cair como um raio, romper um dique. Foi assim com Lawrence Ferilinghetti na minha vida e na vida dos meus amigos, que compartilhávamos o amor pela poesia e pela arte e pela revolução da literatura e dos corpos, dos corações e mentes.
Vida sem fim, ou Endeless life, é um poema de 1980, que Leminski traduziu como Vida infinda. Sempre achei curioso que Leminski tivesse optado por essa tradução, quando o próprio título do livro era Vida sem fim. Confesso que quando cheguei ao poema e li Vida infinda, algo em mim se decepcionou com o poeta curitibano. Achava aquela opção tão pouco sonora, tão pouco fluida. Ao mesmo tempo fazia sentido, que preservava aquela letra D de Endless, de alguma maneira possível. Até hoje, ao ler o poema, penso nisso., nessas escolhas difíceis.
Infinda a esplêndida vida do mundo
Infindos seus lindos seus vivos seus vívidos
seus lindos seres vivos
ouvindo e vendo pensando e sentindo
dançando e rindo soluçando e ganindo
por tardes infindas infindas noites
de amor e êxtase júbilo e agonia
A vida de Ferlinghetti, dos poetas, é sem fim. Ele segue vivo em sua poesia sem concessões, radical e destemida. Poesia que empolga… agora mesmo, enquanto penso nele e nos seus versos, algo vibra em mim e me inquieta. E me tira do lugar de sempre, para sempre.
Obrigado, Bárbara, por trazer Ferlinghetti para ainda mais perto de mim nesses dias.
Ontem comprei num sebo (pela internet) um exemplar de Um parque de diversões na cabeça, editado pela L&PM, um livro que eu devia a mim mesmo há muitos anos. Na descrição o vendedor informava que antiga proprietária havia feito anotações do dia em que comprou o livro, na Bienal do livro de 1986, com os nomes de todas as pessoas que estavam com ela naquele dia. Auspicioso.
Os poços mais profundos
— de Lawrence Ferlinghetti
Botei a máscara de mergulhar e afundei / Alguns metros sob a superfície uns peixinhos nadavam a meu redor / Um pouco mais ao fundo alguns peixes de uns oito centímetros no máximo / Eu boio imóvel logo abaixo da superfície olhando para o fundo do poço / Bem lá no fundo entre as pedras no mais fundo do fundo eu de repente vejo uma truta gorda grande e cinzenta / uns quatro quilos talvez / perfeitamente imóvel contra as pedras cinzentas / Ela seria invisível da superfície e invisível sem a máscara / Então de repente vejo outra truta gorda / pouco menor que a primeira / bem perto dela / quase que sua sombra / também perfeitamente imóvel como se nem respirasse/apesar do riacho rápido que deságua sobre ela / Verão da grande seca / esse é o único poço mais fundo que resta / o próprio riacho reduzido a sete metros de largura / O poço isolado por corredeiras dos dois lados / Antes da seca os dois peixes entraram nele / depois o rio estreitou mais ainda e eles ficaram presos nesse poço cada vez menor e ficam imóveis esperando/prisioneiros/seu mundo cada vez menor / E permanecem no fundo inteiramente imóveis apegando-se ao que têm / Os pescadores não usam máscara e nunca veem os dois peixes lá no fundo e mergulhamos de novo & de novo olhando os peixes em meditação / uma disciplina de iogue que há de continuar até o riacho ficar seco / Então quem sabe vamos ver os dois ainda em posição de nadar / nadadeiras estendidas / bocas semiabertas / olhos semicerrados / Ou então / muito depois / seus esqueletos ainda intactos na mesma posição / assados no sol inclemente / como monges budistas queimados na posição de lótus / Ou ainda muito muito depois em outra época / dois esqueletos fósseis descobertos / estranha coisa extinta chamada Vida / E se ficássemos aqui com eles esperando esperando / os do futuro / talvez não pudessem imaginar um garoto e seu pai pescando neste riacho / ainda que encontrassem nossos crânios redondos junto com os peixes / Porém agora vendo a beleza desses peixes lá no fundo / tão imóveis / tão lindos / imersos em seu sonho profundo / no último poço profundo / Paramos de pescar viramos e voltamos para os poços mais profundos de nossas próprias vidas.
Compre na Blooks Livraria o livro ‘Amor nos tempos de fúria’, de 1988, publicado no Brasil pela L&PM Editora
Paris, 1968. Os estudantes da Sorbonne tomam as ruas com protestos, discursos e pichações. A eles unem-se trabalhadores, artistas e músicos, iniciando uma das maiores greves gerais da história. O calor desta revolução serve de pano de fundo para o encontro entre Annie, uma pintora americana, passional e idealista, e Julien, um cético banqueiro português que afirma ser anarquista de coração, mas que vive confortavelmente segundo o espírito burguês.
O consagrado poeta beat Lawrence Ferlinghetti revela seu talento para a prosa ao narrar a complicada paixão entre Annie e Julien. Entrelaçando a história íntima de seus personagens com os conflitos sociais da época, o autor faz uma síntese das questões políticas, filosóficas e artísticas que marcaram uma geração.