6222: livro novo de Terêncio Porto chegando! Confira capítulo em primeira mão! Revista Kuruma'tá, 12 de abril de 202112 de abril de 2021 Depois de encarar, com bravura e louvor, uma campanha de financiamento, diga-se, de sucesso, nosso amigo, parceiro e colaborador Terêncio Porto já pode falar que seu novíssimo livro 6222 está pra sair. Eu mesmo, este que vos escreve, diante de um computador em Vila Isabel, na encantada e maltratada cidade do Rio de Janeiro, colaborei na campanha e aguardo ansioso a chegada do meu exemplar, belamente editado pela Editora Urutau. Conheço bem a escrita de Terêncio e a perspectiva de lê-lo em páginas inéditas é deveras animadora! E enquanto o livro não chega… eis a surpresa! Terêncio nos oferece, via Revista Kuruma’tá, um capítulo da obra em primeiríssima mão! Leia agora! Marjorie leva Vicenzo pro labirinto do parquinho. Muito autoconsciente, olhou o horário antes de saírem da área do parque aquático. Sabe que resta pouco tempo pra brincar. Mesmo assim, decidiu ir. E levar o amigo junto, que em absoluto esquece desses detalhes mundanos como que horas são, a que horas deve partir. Os pais, por sua vez, a essa altura não recordam muito nitidamente terem filhos. Uma janela pra desligar o exaustivo vínculo permanente com suas crias apresenta-se, um tapete vermelho pra descontração, estendido em convite, chancelado pela armadura protetora daquele eldorado. São capazes de lembrar instantaneamente dos rebentos, ao menor alerta, claro, como algo incrustado em si, geneticamente atado por extenso, queimado em baixo relevo no âmago deles, mas são também capazes de se permitir um fugaz esquecimento embalados pelo deleite do momento, fim da tarde de sábado sendo geralmente o espaço ideal pro florescimento da oportunidade anunciada, com a abençoada tranquilidade da tutela vigente, a paz da estabilidade absoluta, o controle a prova de vazamentos, a contida e conquistada felicidade. O domingo, indexador geral do começo de semana, traz a reboque uma névoa baixo-astralizante pra maioria, apavorante pralguns, gosto acentuadamente azedo de fim do ciclo de descompressão e fuga – o último naco dum suntuoso hambúrguer quando você já está com a barriga inchada e o prazer nem se compara ao do começo. Aliás, o prazer nem é mais tão prazer assim se você for realmente sincero e parar pra pensar e puder admitir. Cacete, você deveria simplesmente abrir mão daquela merda. De fato, sua barriga dói. Já deu, vai, mas aquilo é parte de um todo que era tão gostoso…, dá pena jogar fora, então você acaba mandando pra dentro com relativo desgosto no impulso de aproveitar as coisas porque, um dia, elas acabarão. O dia anterior, o glorioso sabadão, está taticamente posicionado longe o suficiente dessa bad. O clube como entidade de salvaguarda dos escolhidos, coração de ouro no conceito do condomínio fechado – os seguros limites de suas dependências de lazer alojadas dentro dum já hiper seguro complexo –, proporciona graciosamente o tipo de bem estar almejado pra ocasião, o sentimento de completude e entrega total à inevitável efemeridade duma terra supostamente prometida. O cenário certo prum sábado, fim de tarde. Combo dos mais possantes, casamento pleno de oferta e demanda, lugar e tempo escolhidos a dedo, sem dúvida, um lance assim especial, privilegiado. Saciar os desejos, obter satisfação com atestada segurança, de outra forma não seria viável, não seria satisfação. Tudo encaixado no lugar exato, todos uterinamente livres no cercado, acesso previsto às mais diversas fruições. Pra qualquer faixa etária os mais variados desfrutes, ofertas aparentemente intermináveis todo dia, mas com óbvias predileções pelo sétimo da semana como o mais adequado pra se gozar a boa vida – o usufruto ipsis litteris – por razões para além da comparação sábado vs. domingo. Piscina grande, piscina média, piscina pequena, trampolim, piscina com borda infinita, piscina coberta, aquecida, com cascata, hidromassagem, hidroterapia, hidroginástica, natação, sauna seca, sauna a vapor, banho turco, área pra repouso, recanto da terceira idade, academia da melhor idade, jardins-zen, futebol, basquete, vôlei, futevôlei, tênis, squash, peteca, bar, restaurante, bistrô, quiosque do pastel (fritos na hora), feira livre às terças, cestas de orgânicos, bar do tênis, padaria delicatessen, club gourmet, pizza no forno a lenha, rodízio de pizza no forno a lenha, aniversário com pizza no forno a lenha, picolé, chopinho, frango a passarinho, provolone à milanesa, sundae, milkshake, banana split, capirinha, caipiroska, churrasco (feito em geral por um simpático gaúcho pilchado que cobra por período e faz as compras de antemão), buffet, comida japonesa, petit gatêau, profiteroles, quindim, bomba de chocolate, bomba de creme, casquinha de sorvete, porção de pãozinho de queijo quentinho, pão francês, 10 fornadas diárias propaladas via zap – esse sino de igreja pós-moderno –, boate / cassino, baile do havaí, festa junina, roda de pôquer, torneio de canastra, bingo, truco e sueca, encontro dos apreciadores de carros antigos, encontro dos novos fabricantes de cervejas artesanais, encontro dos MCs mirins (têm de explorar todos os nichos possíveis nas trincheiras condominiais, sem preconceitos, o que o jovem quiser, a moda é regra), 6 parquinhos infantis, cada qual com diferente temática, hack pras pranchas, balsa pra praia, de 6 às 18h, às 20h no verão, stand up paddle, skate park, cineclube, bosques, horta orgânica comunitária (rigorosamente cultivada pelos funcionários), fonte zen (com carpas ornamentais), chafariz, estação de tratamento de esgoto, projeto de reciclagem com 100% de meta (estima-se 78 atualmente), salão de videogames, campeonatos, torneios e copinhas intercondominiais, olimpíadas do condomínio, gincana, caça ao tesouro, ping-pong, totó, sinuca, pipa, figurinhas, peão, ioiô, revistinha de sacanagem (esses lances mais oldschool todos infiltrados por obra do jornaleiro local, concessão antiga, difusas influências), choupana das terapias holísticas, minigolfe, massagem tailandesa, massagem ayurvédica, RPG, fisioterapia tradicional, cinesioterapia, osteopatia, pilates, antiginástica (um dos últimos redutos do Rio a oferecer tal obscura e anacrônica modalidade), shiatsu, reflexoterapia, salão de beleza, barbearia hipster (vaidade e rudeza combinados à perfeição como se fossem fazer sua barba com uma chave de boca ou algo que o valha enquanto você ajeita sua permitida e até incentivada cinta-liga por debaixo das calças), manicure, pedicure, calista, podólogo, depilação (tradicional ou a laser), colorista, hair designer, designer de sobrancelha, escova progressiva, corrente russa, musculação, personal training, spinning, salão de ginástica, salão de ioga, acupuntura, tai chi chuan, atelier de tatoo (uma arte infelizmente banalizada pelo exagero do uso, popular até mesmo ali), espaço pra terapias alternativas, degustação de café, harmonização de vinhos, jornalzinho, houseorgan, classificados, blog, vlog, intranet, grupos fechados nas redes sociais, grupos secretos nas redes sociais, rede social exclusiva, apps, circuito interno de tv, bocha, fraldário, oficina de pão artesanal, pistas de corrida e caminhada, ponto do carona, ônibus executivos de luxo programados em escrutinadas rotas e horários pra obtenção da máxima eficiência no atendimento ao seleto público, circuito de cross country, minizoo, minifazenda, colégio bilíngue, curso de línguas, intercâmbio, cachorródromo, adestramento de pets, encontro dos amantes de pets (patrocinado pela petshop local), colônia de férias, excursões pra destinos exóticos, excursões culturais, excursões radicais, roteiros customizados por agentes exclusivos, feriados comemorativos festejados publicamente, em fraterna comunhão comunitária, crossfit, zumba, macarena (tudo a seu tempo), jiu-jitsu, box tailandês, plantão médico 24h, enfermagem top inclusa, em consultório dentro do clube, reuniões com dicas de saúde e qualidade de vida, dança de salão, dança do ventre, grupo de escoteiros, acampamento nos bosques, teatro infantil, teatro, teatro pra terceira idade, tertúlia literária, clube do livro. Enfim, zilhões de serviços e atividades superestimuladas pelo staff interno. Quanto mais, melhor. Toda sugestão é bem vinda e será acolhida, nada mais é fora de mão, o terreno das iniciativas estapafúrdias é fértil e enorme porque ultranecessário. Uma atmosfera de coaching num mundo onde ninguém precisa de coaching porque todo mundo é (já nasceu) coach, um estudado oásis arquitetado profissionalmente em colaboração com as lacunas dos habitantes locais. Pelo que se ambiciona, as invencionices de elite pra manterem-se integralmente entretidos das solas dos pés à raiz dos cabelos são até ainda tímidas, possivelmente engatinham. Ao florescer, o organismo condominial dera realmente bela galgada a mais no planejado de partida, nas origens do esplendor. Elaboradas via de regra por consultores, MBAs, pesquisadores de disciplinas ainda pouco difundidas e tipos afins, de linguajar veloz e pegajoso, as incessantemente renovadas listas de proposições expandem-se aos confins da imaginação. Inclusive por conta do lento e gradual envelhecimento da população, que corre do tédio como o diabo foge da cruz, as ações multiplicam-se exponencialmente, toda essa profusão de ofertas concentrada num raio de não mais que dois quilômetros. E, no lado B do cardápio (sabidamente, uma face bem menor, ou talvez apenas mais concentrada), as drogas recreativas ilícitas, toleradas e normativamente ocultadas, mas presentes em profusão. Pro caso de você necessitar de algo além do batalhão bioquímico prescrito nos caros consultórios psiquiátricos – pra que sorria, você está aqui, favor não destoar dos demais – somado à generosa e bem arraigada cultura etílica detectável em qualquer ensejo social, o álcool como centro nevrálgico das operações. Frontal com birita, rivotril com uma tacinha de vinho, quem nunca? E quem consegue ficar só nisso? Os dois gêneros presentes são separados da maneira mais simples e objetiva possível. Escassas interseções quando inevitáveis. As coisas dos homens, dos homens. As coisas das mulheres, das mulheres. As coisas das crianças, das crianças. As coisas dos velhos, dos velhos. O lugar certo, o local onde tudo tem lugar certo, o posicionamento correto pra evitar ou dissuadir tensões, escolhe a balinha, pode escolher, os problemas ou conflitos todos convidados a aguardarem do lado de fora, gimme a goddamn break. O suave marasmo burguês, um bucolismo com brios porque a vida já é muito complicada, aqui nós vamos simplificar as equações, cortar sinais, reduzir, vamos vencer, vamos vencer. Marasmo e bucolismo contraditoriamente frenéticos, numa bandeirada das confusas intenções, estruturalmente comprometidas. Mais que merecidos, conquistados conforto e acolhimento – com muito esforço e sacrifícios próprios. “Um novo jeito antigo de existir” dizia o slogan de lançamento, textualmente abandonado ao longo dos anos, porém perpetuado em espírito. Tradição mais ou menos recente, no entanto, autosuficiente e disposta a perdurar. Como num desenho animado, parece existir ali um campo de força, um escudo invisível que os isola. Mas nem tão invisível, há enorme condicionamento pra não reparar no isolamento. Convenientemente, encobre-se o escudo de força com uma vibe blasé. Uma redoma, física e moral. Todos tacitamente seguem as regras da alegre sociabilidade e do consumo, ali é risada, ali é contentamento, ali é harmonia e docilidade. Ali, ignora-se o lado de fora. Marjorie, sem se preocupar com essas ideias de limites pois ainda nem conhece direito ou distingue o que está fora do que está dentro, segue pelas vielas exíguas do labirinto, Vicenzo atrás. A atenção aos horários já é limite o suficiente pra ela, por hora. O chão é de areia, as paredes sem teto não são muito altas. Sorte serem crianças, pra quem tem menos de 1,48m – são praticamente da mesma altura, a menina ligeiramente maior, menos de dois centímetros – parecem enormes e cumprem seu objetivo primordial: não permitir que se enxergue o caminho a seguir, o que mataria totalmente o princípio do que é um labirinto, do que é se perder nele, o mistério erigido. A persistente umidade do banho de piscina rapidamente os calça com botas de bife à milanesa, areia grudada mais ou menos até o começo das canelas. Ela tenta correr rápido o suficiente para despistá-lo, mas é difícil, o cabrito segue coladinho em seu encalço, e não desgruda. Levemente suado e um pouco catarrento, e mesmo após as aproximadamente mil e trezentas rodadas de briga de galo disputadas ao longo da tarde, o amigo ainda tem descomunal disposição, até pros parâmetros da diabólica leoazinha. Talvez um elástico os conecte; quando ela se afasta, ele ganha empuxo e ressurge a seu lado, invariavelmente com um esbarrão. Talvez seja isso. Corre, para, esbarram, corre, para. Agenciados numa composição. Esbarram. Agarrados como chiclete, estica, volta. Corre. Encontram uma das saídas, evadem-se do dédalo. Respiram ofegantes na superfície da brincadeira. Retomam sem aviso prévio, iniciativa de Marjorie visando não permitir Vicenzo recuperar o fôlego completamente, mesmo encontrando-se em situação análoga, um tanto resfolegante. Correm até outra entrada, a mais próxima, uma das 7 existentes, reimergem novamente pra se perder. Em algumas passagens, o caminho é por dentro da parede, num quadrado ou retângulo furado nela. Ao deslocarem-se freneticamente, toda vez é um Deus nos acuda pra abaixar a tempo e mergulhar lepidamente através do buraco, freando o mínino possível. Em dado momento, numa dessas transições, Marjorie erra o intuitivo cálculo e acaba dando uma forte cabeçada na aresta superior de um dos quadriláteros vazados. As paredes, além de altas, são multicoloridas, cada plano uma cor diferente. O destino reservou um vermelho róseo pra abalroada têmpora-paredal dela, mas onde emerge, tonta, do outro lado, já é lilás. Dói. E lateja. E dói. Bastante, inclusive. No entanto, a mistura de adrenalina, alegria, endorfina, frenesi, orgulho e até uns ainda tímidos feromônios não permite que chore. Ao invés disso, depois de breve pausa, a consciência abalada – olhar afundado num mar contemplativo, nadando por entre o canto das sereias, a autocomiseração e o desejo de ser tubarão –, reage rapidamente pra dar uma sonora e selvagem gargalhada na cara do amigo, que tinha vindo todo pimpão em seu socorro. E sai correndo, sebo nas canelas, sem que dessa vez Vicenzo consiga segui-la. A ofensa do riso gritado em sua cara, sobretudo em oposição a seu ímpeto socorrista, o fez hesitar. Ouve os passos da amiga afastando-se enquanto retoma a moral, porém os passos silenciam. Assoa o nariz no chão, uma fina linha de catarro estampa seu peito sem que repare. Segue por onde ela havia seguido, até onde pôde ver, mas logo chega a um entroncamento de caminhos, azul marinho a esquerda, amarelo a direita, marrom seguindo em frente. Sem rastro visível, para. Dali pra frente, não tem como saber por onde a amiga foi. Chuta amarelo. Novas paredes, azúis, vermelhas, rosas, pretas, brancas, circula, corre, para, não esbarra, circula, perdido nas entranhas do labirinto, sem que encontre a amiga. Paralisa desanimado, um impasse. Olha em volta. Subitamente o labirinto transforma-se no maior labirinto jamais construído, não entende bem em que momento aquilo ocorreu, estranho. Decide sentar em seu interior, uma pausa pra respirar e pensar. Está quase escuro, em breve anoitecerá. Passados dois minutos, levanta pra retomar as buscas, chama o nome dela andando amiúde, “Marjorie? Cadê você?”, de maneira contida porque não quer assumir a derrota. Logo, não obtendo resposta, cessa os chamados. Anda mais um tanto, a esmo. Tem a impressão de ter ouvido algo, ter visto uma sombra, acelera o passo. Abaixa pra passar por um buraco verde, sem pressa. As cores parcamente distinguem-se, tendendo agora a claras ou escuras, somente e cada vez mais. Em pouco tempo o breu tomará conta de tudo, vamos supor, coisa de dez a quinze minutos. Fica puto. Mas emputecido sério, nuvenzinha negra acima da cabeça, a auréola do inferno, a moral lá no chão. Puto demais. E o crescente lusco-fusco só piora a situação. A cara amarrada, o cenho franzido. A amiga sempre nessa onda de desafios. Sempre atirada, sempre. Que saco. Que chata. Cheia de marra. Forte e intensa. Cheirosa. E linda. É só começar a devanear parado de pé do outro lado da parede verde, essa face roxa, mais aparentando preta, distraidamente olhando a primeira estrela que surgiu no céu, provavelmente um planeta (porém isso ele não imagina), pra ser sumariamente atacado por trás, um megaton double leg twist power de ninja (acompanhado, conforme manda a cartilha, por um estridente grito de guerra bárbaro), perceptivelmente vindo dos céus numa diagonal, perpetrado sorrateiramente por Marjorie em suas costelas. Por sorte, erro de execução ou talvez propositadamente, não pega em cheio. Estatelam-se embolados na areia, as pernas meio trançadas, a menina risota, empolgada com o próprio ardil. O coração de Vicenzo dispara ao cogitado por ele como o mais próximo possível que se possa chegar de um ataque cardíaco não fatal, consegue sentir os batimentos até nas sobrancelhas, nas unhas, na ponta das orelhas, no pinto. Debate-se pra se livrar da investida e seus tentaculares desdobramentos, pra negar o susto, a vulnerabilidade. Faz que vai chorar. No entanto, ao detectar a cara de satisfação da amiga, prontamente engole o choro e dá um tapa na cara dela, um safanão. Com força, mas não muita porque fora sem preparação, um rompante intempestivo. Porém, força suficiente pra que se ouça um belo estaladão por ali, a palma da mão do menino bem encaixada na bocheca da menina. Ela abaixa a cabeça, acaricia a face avermelhada e dolorida, fecha as mãos em concha e cobre o rosto, vai chorar. Ele arrepende-se instantaneamente, chega perto, pede desculpas baixinho. O remorso metástase apodera-se de tudo num rastilho de pólvora, mas que merda, sentimento desgraçado de ruim. Nunca fazer as coisas sem pensar, anota mentalmente. Nem sente mais os batimentos cardíacos, talvez não tenha mais coração. A aguda sofreguidão por um átimo inclusive faz com que tenha dificuldades pra respirar. Nunca achou que pudesse esquecer de respirar. Da maneira mais delicada possível, põe a mão no ombro da amiga, ensaia o começo de um abraço. De repente, antes que o movimento se complete, ela levanta a cabeça algo rugindo ou uivando e rindo alto, uma perfeita viking no campo de batalha a desdenhar histrionicamente de seus aparvalhados inimigos. Mais uma vez o enganara. Aproveita o embalo e cata brutamente o amigo, dando uma meia gravata em sua cabeça (e não no pescoço, como seria um mata-leão “clássico”), o crânio perfilado dele mais ou menos na altura do peito dela, nariz da vítima preso perto do suvaco da algoz, que abaixa a boca e mete a língua em sua orelha. É irritante, é nojento. É aflitivo. Ele adora. Num sagaz movimento de braços pra se libertar, enfiando as mãos por dentro da gravata, abrindo os braços dela e logo entrando numa disputa de pegadas de mãos sobre braços e antebraços, esfregam-se e subitamente estalam um mal ajambrado beijo. Meio de través, nem tão rápido, línguas voadoras no ar sem manual de instruções. O coração dele, passado o primeiro suposto ataque cardíaco, estoura como uma pipoca e agora está do avesso, e assim bate e palpita arritmicamente, quase criando vácuo ou pulando pra fora da boca na interpolação dos movimentos tão forte a latitude da alternância entre as sucessivas implosões e explosões. Pode sentir na pele essas batidas ao contrário, toda sua extensão recolhendo-se pra depois expandir. Vicenzo cresce e diminui em mini contrações pendulares que percorrem toda sua superfície como se inspiração e expiração sincronizassem com o rítmo do coração e isso criasse um empuxo sem precedentes, uma devastadora maré interior que faz seu corpo inflar e desinflar como um bonecão do posto, mas em concentrada expressão, não mais que dois centímetros, chuta – lisergia sem ajuda química só conhecida pela consciência de uma criança. A sensação oral do beijo esvai-se pela enxurrada de sensações conflituosas e, ao que tudo indica, recíprocas. Ela abre a boca e manda “Deixa de ser bobo, não fala disso pra ninguém se não eu te mato.” Depois de tanta artimanha, depois de tanto arcabouço, tanta escaramuça, ora bolas, quem se arrepende do desenrolar dos acontecimentos no fim das contas é a ativa Marjorie. O arranque inesperado, a euforia incontida, as mútuas porradas, as agressões morais, a incontrolável necessidade de se esconder pra assustá-lo, a humilhante linguada na orelha, bem nojentona, o beijo mágico, desajeitado como uma gambá bêbada, tudo parte da mesma essência. A endemoniada menina talvez não devesse expor suas verdades assim, seus ímpetos, sem pensar. Vergonha. Porém, a cara de felicidade que Vicenzo deixa escapar deveria servir pralguma coisa, pra que se sinta melhor. Só que não, de nada adianta, um rebuliço instalou-se dentro dela e agora é tarde. Então, levanta-se calmamente, mas sem falar muito mais, bate a areia do diminuto corpo de criança adolescendo e sai fora entre emburrada – marrenta como sempre, só que calada – e contrariada, sem graçona. Gostou do que leu? Então se ligue no lançamento, em breve, de 6222, de Terêncio Porto, pela Editora Urutau! E se lIgue: A KURUMA’TÁ É CONTRA A TAXAÇÃO DOS LIVROS! LIVROS PRA TODA GENTE! A LeituraLiteraturaLivroTerêncio Porto