Tentei chegar aqui com estas mãos | Poemas de Luciana Moraes Revista Kuruma'tá, 14 de junho de 202310 de outubro de 2023 Ideia de apresentação – por Luciana Moraes Entre uma realidade que existe e outras que não existem, mas que desejam vir à tona, somos convidados a imergir, navegar, explorar essa amálgama poética, num fluxo contínuo, entremeado de imagens e sons. Aqui surge uma escrita que não se resume à dor de um momento, à vinda ou ao lapso de alegria. O livro poderia ser lido como uma teia de poemas em interlocução, ora ou outra, tendo elementos linguísticos do português brasileiro unidos a termos do tupi, maxacali, yoruba, inglês e espanhol . São linguagens que se procriam em diferentes versões de si mesmas, ora dialogando entre si, a partir do encaixe temático, ora pairando em lacunas especialmente deixadas no percurso. O leitor poderá perceber que, a partir de cada um dos poemas (como unidades independentes, mas também intercambiáveis) é possível recomeçar uma nova trajetória de reinterpretação do estar no mundo. O desejo permanece inscrevendo o corpo como um poema infinito no coração de outra história; o poema-corpo guarda e desvela seu estado presente no espaço, no passar de páginas; seu corpo-palavra ressignificado através de outros formatos e de novas palavras ocasionalmente criadas. Na primeira seção, vemos poemas em diálogo ecfrástico com obras diversas, o que nos mostra que a experiência interartística nos oferece muitas possibilidades de acessos, saídas, uma diversidade de enquadramentos do olhar; geração de sentidos dessa escrita dialógica. Ainda nesta seção, há uma subseção, realizada a partir da leitura crítica de Água Viva, de Clarice Lispector e seu desdobramento em diálogos ecfrásticos. Já na segunda seção, existe outra proposta, pois os poemas procuram realçar mais o questionamento da vida diante de situações do cotidiano, “tocadas à espreita”. Desta vez, sem diálogo direto com obras artísticas, há ainda a intensa exploração dos recursos melo, fano e logopeicos. A experiência de leitura talvez possa inserir, quem a percorre atentamente, num universo de múltipla sensibilidade, até mesmo o verbo beirando o “deslimite” das expressões de um corpo sem órgãos artaudiano. A pedra no meio caminho de Drummond, assim como a experiência de sufocamento de Kafka parecem ser resgatadas em determinados momentos, porém no sentido de querermos avançar com um outro corpo, desentranhado da pedra e das paredes, “o corpo no corpo recriando milhares”. Com autonomia em movimento, um feminino que visa estar fora do refúgio, para além de um estado asséptico. Nessa escrita, em saltos semânticos, como uma espécie de “eterno retorno nietzschiano”, após um denso processo de 3 anos de pandemia, temos a denúncia de emoções em série – entre o passado, o presente e o futuro, de modo anacrônico, em embaralhamento – quase que ininterruptamente, buscando o centro, o eixo vital na matéria. O “alvo grito de rapina” entrecortado nas brechas do papel talvez venha nos alertar como somos humanos e quão pouco nos realizamos nesta era viral do antropoceno, chegando ao ponto de precisarmos, de fato, ver o animismo tomar conta de nós. Nesse cenário de “eu-nosso-desmedido”, geramos novas significações às palavras, já tão surradas, em meio à vida ordinária. O instante é extraordinário, incomensurável; mas o tempo passou e passa. O abismo é aqui tocado, em cada instante, para alçarmos outros voos – melhores. Quem sabe?! Livro Tentei chegar aqui com estas mãos é um livro de poesia cujo nome já contém uma dubiedade proposital. Tentativa de chegar com “estas mãos” apresenta uma questão demonstrativa, um desvio do óbvio. Nele, toco em temáticas paradoxais do ser humano, como o luto e a luta, a insatisfação e o desejo, por meio de diferentes tons, ritmos e (des)enquadramentos semióticos. A escrita segue em diálogo com os anos que temos vivido, porém, sob olhares diversos, como uma amálgama de sensações do corpo feminino que pulsa entre euforia, dor, lapsos e rememoração do tempo. Tive a intenção de explorar (no melhor sentido da palavra) o instante presente, desejando extrapolar a visão comum e descobrir outros sentidos para as palavras e para o caminho diário. Desse modo, escrever pode ser atuar com gestos dialógicos em várias esferas das artes (pelo saber e não saber), com intuito de sentir um tempo vívido: o “alvo grito de rapina”. E assim, principalmente por meio da poesia ecfrástica contemporânea, desenvolvo experiências estéticas com 31 obras de artes visuais, de variadas épocas. Há duas seções: “Diálogos Ecfrásticos”, com obras de Frida Kahlo, Clarice Lispector, entre outros artistas; e “Cotidiano Tocado à Espreita”. SELEÇÃO DE POEMAS Seção: diálogo ecfrástico O poema a seguir dialoga com a obra O Veado Ferido (1946), Frida Kahlo < Compenetrado olhar do Abismo> A meta do veado alvejadoé ser mutação e desovadesencarne das flechasnuma ação Cor de Ouro Não há beleza nem altura maiordo que suas Quatro pernas abertasempostadas no caminhogalopando o idílico desconhecidoRessurgindo… Ele comporta o peso (é)depois mais nada:leve e sereno pu(lu)lar de páginas Como se a chuva__________________ se expandindoe toda gota lavandoa dureza da fibra na Cabeça A ferida na vidaPausa de quem recebeu Noveflechas rasteiras cravadasna carcaça mais fina gritante e certa que pudemos V E R O poema a seguir dialoga com a obra Abstract Spiral Galaxies (2008), Kazuya Akimoto Sobre atravessar o horizonte partido Há fome desde a Antera,onde se poliniza galáxiasHá flor de ideias na tinta espacialchegando ao exoesqueleto eem nosso túnel compacto roçandoclaras espirais Se palavra é gasta, sombra túmida de simalícias negam desfibrilação de estrelasdemônio-um representantesaturação de cores invertidas num dragão marítimobranco, pouco comum ao olho nu Nossos pássaros inquilinosfrementes, em desviocolisão da vida que pulsaem nós, sem pergunta Se o peixe feroz, informe e ilegível à claridadeLeviatã New-artífice do exíciodo enredo sem rumocria o mundo anônimonoite em todo o corpo, debalde,carregando as rédeas do tempo nas compotasde falácias As sépalas em preto em branco contraem o passadoe assumem a sustentação de toda a flor até o estigma centralparem borboletas luzentesmitológico sabor do ventoyvytu em zênitetu e tal e tal e tuformam-se tessituras de vida Entre uma cabeça de serpente e outranão ponderando termoscarregando em sua joia ruínasua mortal comprovação O poema a seguir dialoga com a obra Senecio (homem velho) (1922), Paul Klee Ultra-passagens 0. Vida, está aqui o recomeço,espaço onde refaço o textoanterior, desfeito em partes 1.Um anjo em brasa, à espreita, neste céu aberto da varanda 2.Hoje, sexta, tão passada:ontem ainda era segundatoda a vista limpa, sem óculos tocando aquele céu aberto, soletrando-o à víbora do quebra-cabeça lecionando à pedra sobre estar no armãos-pele-sopro-visão 3.tudo foi breve e o Agora vibra 4.Escrevo contigo e sozinha: com o tom drummondiAno eum desentranhado tema da nossa espécie :gravado no corpo com olharesFractais 5.tergiversadas cores dessa sutura, unindo todasas faces : uma paisagem híbrida, risos e chorosnas nuvens, neste umtempomuito, uma ferida doidamentetão batida e tocada,mas tão perplexa,tão retrasada. 6.Se confiaria no verbofazer? O poema a seguir dialoga com a obra Tentativa de ser alegre (1975), Clarice Lispector — técnica mista sobre tela Novidade do sonho A boca prova a placentaArte das fêmeasque par(t)em São os fatos da vidaem abertoredigindo o espaço do sinuoso nada Ela sente o Deus na ostrae respira, ainda que falteSaliva Leia o meu intento de sorrirLatejante o furor do toqueIndescritívelCom as mãos desejadas Tulipa desconhecidamatéria cúmplice e enamorada eu vivo para ascender aos poucosrumo ao momento elementar Quem sabe responder à minha saudadedo sonho… Seção: cotidiano tocado à espreita Interlúdio seminal Entre a fase do pólipo e da medusa inaugurada na gestação do corpo:escrito-fraga perfilhando água-viva Nascedouro de transfigurações ondeTurritopsis nutricula anoitece~tremeluz o evolado nome~ emtentáculos, vagas e sombras~ Renasce daquilo que subjaz quandose é destroçada a partícula informeo substrato infinitesimal da loucura Vem da sede de aguçar a plânulae ancorar no território do Silente Poesia: gozo primevo d’OrganismoCélula-tronco : mãe-ocaso-abrigotranse nutante~ em marulho de gerações Luz imantada ao corpo:pura impossibilidade rIlhada~anímico gesto reVerso à degradação Ao partir da impermanência, um~desenlace e excede o Abismo. 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