Sérgio Ricardo em 3 histórias Revista Kuruma'tá, 18 de junho de 202029 de julho de 2021 Texto de Toinho Castro “Todo morro entendeu quando Zelão chorou…” Sergio Ricardo – foto: Ana Rezende Hoje é aniversário de um dos grandes nomes da cultura brasileira. Artista completo, pleno, Sérgio Ricardo transita pela música, artes plásticas, cinema, poesia, com uma obra vasta e riquíssima. É um artista sem medo, que vem traduzindo o Brasil para quem quer entender desde que me entendo de gente, de brasileiro. São 88 anos de vida e uma obra de resistência, que vai se desenhando desde os anos 1950, passando pela febre dos festivais, atravessando a ditadura, compondo trilhas, fazendo filmes e desafiando o Brasil sem ceder aos modismos e bons-mocismos. Seu nome está inscrito em verdadeiras pedras monumentais como Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, filme para o qual criou uma trilha tão poderosa e marcante quanto o próprio filme. Por conta do teor de suas letras e mesmo da sonoridade de seu cancioneiro, podemos facilmente de imaginá-lo como cantor de protesto… a repercussão de discos como o que gravou em 1973, que traz Calabouço, pode nos enganar. Mas não, não se engane, que Sérgio Ricardo é mais amplo que um rótulo. Sua música é valente, é uma música que vem do povo, da força das tradições musicais, e aponta continuamente para o futuro. É um Brasil adentro danado! Para entrar nessa celebração de vida e obra mágicas de Sérgio Ricardo para falar um pouco de como alguém assim se conecta com a vida da gente, com nossa história familiar e afetividade, como molda nosso imaginário e gostos e escreve linhas de fogo na nossa história. Primeira história Quando eu era criança, contei isso para Marina, sua filha, eu tinha medo de Sérgio Ricardo. Sua imagem em preto e branco, com o violão em punho, aquele violão prestes a se arrebentar contra a mesmice, carregado de tensão, tensão do artista em crianção! Era uma imagem que assustava uma criança que crescia prestando atenção ao mundo. Mas quando eu escutei Calabouço foi que se deu aquele sentimento de profundeza e escuridão, que eu sabia que atormentava o país. Meus país era muito politizados e eu já tinha essa percepção da dor que se instalava, mesmo sem entendê-la completamente, sem entender a dimensão daquela violência que passávamos. Calabouço me transmitiu exatamente o que era aqui. Eu escutava aquela sua voz densa, intensa, como uma verdade se instalando. Cala a boca, moço! Eu ouvia as conversas e ia juntando as pontas sob a guia daquela canção, para saber do Brasil. Eu era criança e não daria conta de tanta coisa, mas Calabouço me alertou, me despertou e despertar assim assusta a gente. Olha o vazio nas almas / Olha um violeiro de alma vazia. Recentemente comprei o disco em vinil, botei pra rodar na vitrolinha e entre ruído talhado nos sulcos, pelos 47 anos que se passaram desde seu lançamento, recuperei aquela sensação de poder de uma voz, de como uma canção pode ser determinante no nosso aprendizado e identidade com uma nação. Cidadania que chama, né? Segunda história Ainda moleque, ligado na TV pra assistir o Sítio do Picapau Amarelo, série da Globo baseada na obra de Monteiro Lobato, eu reencontro Sérgio Ricardo, meio sem saber direito. Os livros de Lobato mesmo, até então, eu nunca havia lido. Minha aventura literária era a coleção Vagalume, os livros de Maria José Dupré, Lúcia Machado de Almeida… mas ali na telinha luminosa da TV da sala reinava o Sítio e as invenções de Narizinho, Pedrinho, Emília e do Visconde de Sabugosa. E o que nos carregava naquelas histórias aventurosas era uma trilha sonora linda, caprichadíssima, realizada pela nata da música brasileira. Depois de grande é que a gente vê a constelação que tinha ali, reunindo nomes como Dorival Caymmi, Doces Bárbaros, Gilberto Gil, João Bosco… e Sérgio Ricardo, interpretando, de sua autoria, a música de Emília. De novo a visitação da poesia. Acho que foi uma das primeiras vezes em que a ideia de poesia se instalou na minha cabeça. Essa coisa da imagem poética. Talvez eu pudesse dizer isso de qualquer música daquela trilha. Todas erguiam o véu para um outro modo de ler o mundo. Mas em Emília tem uns versos que até hoje atiçam minha própria inspiração e imaginação. Por mais que o sol se escondeCruzes se cravem no raiar do dia São versos em que vejo a criatividade plástica de Sérgio Ricardo. Mas naqueles dias, com meus dez ou 11 anos, eu projetava em minha imaginação esse sol se pondo, essas cruzes cravadas num raiar de dia. Eu não sei se entendia muito bem esses versos; e acho que talvez ainda não entenda e muito possivelmente isso não importa. Importa a força dessa imagem na mente de uma criança, impulsionando o desejo de ser também poeta e escrever coisas que os outros não entendam. Terceira história Poucos anos atrás, Kleber Mendonça Filho, diretor, ao lado de Juliano Dornelles, desse filme incrível que é Bacurau, me enviou o roteiro do mesmo, para que eu desse lesse. Eu e Kleber somos amigos desde os tempos de faculdade e tenho a alegria de acompanhar de perto sua carreira, desde os primeiros filmes. Sempre trocamos ideia e não foi diferente com Bacurau. Algum tempo depois de ler o roteiro e comprei aqui no centro do Rio, um vinil do Sérgio Ricardo, uma coletânea daquela coleção Nova história da Música Popular Brasileira, da Abril Cultural, de 1978. São discos que eram lançados em série, acompanhados de fascículo com história de vida e obra do artistas contemplados em cada volume. Ouvindo o do Sérgio Ricardo, esbarrei em Bichos da Noite, música originalmente escrita para a peça O Coronel De Macambira, do poeta pernambucano Joaquim Cardozo. Escutei aquele rito, aquela passagem sombria, e pensei imediatamente no roteiro, que ainda não era filme. Havia ali aquela carga que parecia aflorar do arruado de Bacurau. Achei a música no YouTube e mandei pra Kleber naquele dia mesmo. Algum tempo passou, mais de ano, certamente, e não tive notícias daquele e-mail. Até que então encontramos, eu e Kleber, aqui no Rio de Janeiro e fomos jantar. Ao perguntar pela música, se ele havia recebido, ele avexou-se em responder “Nossa, Toinho! A música tá no filme! Mexeu demais com o filme…”. Imagine minha alegria por ter dado esse verso, que não é meu, ao poema que é Bacurau! Ter estendidos as mão e feito essa conexão me comove. Quando assisti, finalmente, ao filme no Cine Odeon, na Cinelândia, e aquela voz que conheço desde Calabouço soou desde dentro da tela, da terra, do sertão nordestino, do povo daquele vilarejo…. que emoção. Foi um reencontro com alguém que nunca encontrei, mas que me acompanhou vida afora, com suas lições de poesia e cidadania, no sentido de reconhecer, pela música, um pertencimento e uma responsabilidade. Parabéns, Sérgio Ricardo. E obrigado por tudo que não esquecerei. A AfetoBacurauMemóriaMúsicaMúsica BrasileiraResistênciaSérgio RicardoToinho Castro
Uau! Como me recordo, sim, sem dúvida, na infância na TV preto-e-branco nos festivais de época e dessa intensa figura de Sérgio! Zelão, Esse Mundo é Meu, Deus e o Diabo na Terra do Sol e algumas outras faziam parte do imaginário de época mais conturbada que a atual, em que conversávamos na sala e sabíamos que as paredes tinham ouvidos muito hábeis, até prendendo meus pais entrando pelos anos 80 – por meio do temido esquadrão da morte! Sérgio Ricardo, Chico Buarque – e Taiguara tempos depois – botavam prá quebrar – em gíria desse tempo – nas canções e letras e atitudes que nos transmitiam certo alento (como agora se faz nos EUA com “quero respirar”, queríamos poder respirar!). Esta esquerda sobreviveu só em termos e se dissolveu nas lágrimas dos milhões de mortos pelo mundo dito livre e no outro, paupérrimo em recursos, mas dignamente completo de cultura! Mesma cultura agora achincalhada por estes sombrios recantos de nossa mais funda alegoria louca de nosso passado presente escravagista e senhorial ainda! Ricardo era mais que condizente a estas minorias que se tornaram em maiorias crivadas de desesperança e postergadas em sua ação hodiernas: ele era a própria gente de seu povo, gente como a gente – regado a musicalidade e retidão no injusto, no maltrato, no descaso e na violência desmesurada dos povos ameríndios e muitos bilhões de espoliados pela Terra. Ah, grande Sérgio Ricardo quebrando seu violão no palco, inesquecível e insubstituível – que o tempo põe prá correr mas ele insiste em marcar seu território amplo e perene… Responder
Sou Cida Rocha, eu gostei muito do seu artigo seu conteúdo vem me ajudando bastante, muito obrigada. Responder