Sou papa-jerimum!

Texto de Toinho Castro


Cortei o jerimum comprado na feira, já cortado em bandas e sem casca, em pedaços menores, meio que sem necessidade já que o cozimento é rápido, mesmo se os pedaços são grandes. Talvez o fiz para usar as mãos, para exercer algo que é ancestral e fala comigo desde longe, que é cortar os alimentos para prepará-los. Mas foi na hora que peguei o processador, no qual jogaria os pedaços cozidos para fazer um creme ou purê, que o vento mudou na minha cabeça.

De repente veio a mim a roça de jerimum que nunca vi, a cadeia de mãos, como as minhas mãos, só que rude e hábeis, que talharam a terra e a semearam, atravessando chuvas e secas. As casas de taipa, o esforço enorme de gerações pelas ramas espalhadas sobre o solo, brotando frutos igualmente enormes, de carne laranja. E eu ali, com uma máquina do futuro, cheia de lâminas, a desfazer o jerimum de mil passados em purê. Era como um oxímoro, palavra que aprendi tardiamente e que gosto de usar; uma figura de linguagem que consiste em relacionar numa mesma expressão ou locução palavras que exprimem conceitos contrários.

A questão, sabe, é que nasci em Natal. Aos pouco versados em geografia, trata-se da capital do estado do Rio Grande do Norte. Muito cedo eu soube que era um papa-jerimum. Crescido no Recife, aviso tratar-se da capital de meu Pernambuco, não esqueci essa marca de nascença, esse signo de um pertencimento. Lembro cristalinamente da nossa mãe, minha e dos meus irmãos, informando-me sobre um passado que era um destino: Você nasceu em Natal. Você é papa-jerimum!

Papa-jerimum e Potiguar, que por sua vez significa comedor de camarão. Isso nos dá uma combinação que é um tipo de arte, como tantas que não não vistas como tal. O jerimum recheado com camarão. Iguaria que une o mar à terra, os reinos animal e vegetal numa simbiose única. Um sabor que é motor de muitas narrativas. Recordo que no bairro de Ouro preto, em Olinda, havia uma casa de família que preparava esse prato. Era necessário que se telefonasse combinando a data e informando quantas pessoas iriam. Não era um restaurante, mas pessoas como a gente, que abriam suas portas e recebiam estranhos, todos unidos pelo elo sagrado do jerimum com o camarão.

A verdade é que não sei exatamente de onde vem essa expressão papa-jerimum. Diz-se que vem de uma história de tal governador que pagou os funcionários do estado com jerimuns. Pouco interessante dito assim. Interessante mesmo são os jerimuns, que no Sudeste chamam de abóbora. Abóbora, fruto da aboboreira. Jerimum, fruto da fala, dos jeitos do Nordeste. Fruto do barro das casas espalhadas em roçados que se sobrepuseram a outros roçados postos sobre roçados.

Eu que sou urbano, de duas capitais, conheci o jerimum nos supermercados, sob a luz fria fluorescente. Mas parece-me que dentro de cada um deles há uma luminosidade amarela, quente, que emana e transporta quem a percebe para os campos onde crescem, das mãos de quem planta. É preciso, cada vez que se cozinha um jerimum, prestar algum tributo a essa história, sobretudo quando se é, como eu, papa-jerimum.


Pesquisando um pouco enquanto escrevia esse texto descobri um poema, escrito por Henrique Douglas de Oliveira. Ele tinha 12 anos quando escreveu esse poema e é potiguar como eu. Como eu, é papa-jerimum. Henrique Douglas é do pequeno município de José da Penha (alguém recorda Severino de Maria, dos versos de João Cabral de Melo Neto no seu poema Morte e vida Severina?), no interior do Rio Grande do Norte, perto de Mossoró e Pau dos Ferros. Com seu poema Henrique ganhou a medalha de ouro na Olimpíada de Língua Portuguesa daquele ano de 2012. Trecho do poema foi ainda utilizado numa questão do ENEM. Esse sucesso de 6 anos atrás e tão distante do Rio de Janeiro onde me encontro escrevendo, deixou-me orgulhoso do meu conterrâneo.

Tomo a liberdade de reproduzir aqui seu trabalho, que faça do sertão, da visita da chuva, do gibão e do gerimum… sim, com G mesmo. Leia o poema e descubra a razão.


Ôde casa?!

Ê, Ê, Ê… Morena
Ô, Ô, Ô… Machada
Ê, Ê, Ê… Grauno
Ô, Ô, Ô… Pelada.

O vaqueiro solta a voz
No oco do mundo,
Com seu aboio dolente
Em poucos segundos,
Encanta gente e gado
“Eita” aboio profundo!

Chapéu de couro e gibão
Luvas e peitoral,
Perneiras e sandálias
Tudo artesanal,
Ofício de meu pai
Vaqueiro magistral.

O sertanejo anseia
Uma visita em nossa terra,
Faz as honras da casa
E ansioso espera,
São José intercede
E o povo por ela reza.

Quando a visita chega
Molha o tapete vermelho,
Desbota todo ele
O caminho é só lameiro,
Pra nós é festa
É festa “pros violeiro”.

Eles cantam e encantam
Aqui no nosso recanto,
Em noite de cantoria
Improvisam com seu canto,
É coisa da nossa gente
Aqui do nosso canto.

Sítio Gerimum
Este é o meu lugar,
Pedaço de chão resistente
Como o povo que aqui está,
Que vive sempre firme
Firme no seu caminhar.

Meu Gerimum é com “G”
Você pode ter estranhado,
Gerimum em abundância
Aqui era plantado,
E com a letra “G”
Meu lugar foi registrado.

Este ano a visita
Raramente nos visitou,
Sua ausência causou tristeza
E nosso sertão chorou,
Nem as lágrimas derramadas
O chão seco molhou.

O tempo parece mudado
Mudou o verde do capim,
A brisa está mais quente
Não faz um carinho assim,
Até os passarinhos
Voaram pra longe de mim.

Espero que os bons ventos
Fluam na nossa cidade,
Visitem José da Penha
Sem nos deixar saudade,
Tragam-nos boa nova
Espalhando prosperidade.

Enquanto espero a visita
Você pode entrar,
Também é meu convidado
Pode se aproximar,
Nossa essência permanece
Sinta… Está no ar!

Henrique Douglas de Oliveira


Para encerrar, uma música de João Silva, parceiro de Luiz Gonzaga em músicas como Nem se despediu de mim e Pagode russo. A voz é de Marinês. De quem mais poderia ser? É tempo, é história e saudade.

Obrigado, Jerimum, por ter me dado assunto numa manhã abafada no Rio de Janeiro.

Texto de Toinho Castro