Com um beijo de Judite

Texto de Toinho Castro


Hoje o caríssimo Braulio Tavares publicou na sua rede social um trecho do ensaio de Batendo pernas nas ruas: Uma aventura em Londres, ensaio da escritora inglesa Virginia Woolf, publicado no livro O valor do riso e outros ensaios, da finada e nunca esquecida Cosac Naify. O trecho selecionado por Braulio, de uma outra tradução (talvez dele mesmo), era esse:

São livros selvagens, os de segunda mão, livros sem teto; chegaram juntos em grandes bandos de plumagem variegada e têm um encanto que faz falta aos volumes domesticados da biblioteca. Além do mais, nessa miscelânea que temos por companhia, podem os esbarrar por acaso num estranho completo que talvez ainda se torne, com sorte, nosso melhor amigo no mundo.

Ao ler essas linhas de um texto publicado pela primeira vez em 1927, veio-me a mente toda uma cultura do livro usado que envolveu minha vida, desde que me tornei uma pessoa inteira, com idade para perambular pelo centro da cidade em busca de livros baratos para ler.

Havia no Recife, naquele tempo, e ainda há, na verdade, um lugar ali mesmo no centro da cidade, no bairro de Santo Antônio, chamado Praça do Sebo. Um grande e agradável espaço mais ou menos circular que abriga ainda diversos sebos de livro, e que frequentei com assiduidade até deixar a cidade, em 1997. Comprei alguns livros importantes ali para a minha formação enquanto leitor. Muitas vezes vadeei de um sebo para o outro, olhando as lombadas e folheando a esmo, sem meso intenção de comprar.

A Praça do Sebo, quando a visitei há pouco, em agosto de 2018 [
Foto de Toinho Castro]

Tudo isso faz-me recordar de uma das coisas que mais me fascinavam, e ainda fascinam, em qualquer livro usado que tive nas mãos: as dedicatórias.

[Foto de Toinho Castro]

E o que é uma dedicatória? Bem, imagino que existam respostas bem melhores que a minha. A dedicatória é uma escritura afetiva, que atesta a transferência de um bem, esse estranho bem chamado livro, de uma pessoa para outra. Muitas vezes detalhando até as razões e a dimensão desse gesto. Outras vezes de maneira sucinta ou mesmo cifrada. Um contrato que somente as duas pessoas envolvidas podem compreender e justificar os termos.

Não há livro usado, esses selvagem, que eu pegue para não procurar por uma dedicatória em algum lugar propício. Seja na folha de rosto, no verso da capa ou mesmo num pedaço de papel solto em meio às páginas, escolhido assim por um capricho qualquer. Bem sei que nem só de livros viviam as dedicatórias, mas creio que seja uma arte em desuso. Talvez justamente nos livros encontre ainda um nicho de resistência. Como retorno do hábito de comprar vinis pude encontrar em alguns LPs antigos, e usados, naturalmente, dedicatórias marcando datas, amores, carinhos, entregas. Como nesse primeiro e belo disco de Geraldo Azevedo, de 1976, que comprei por aí.

[Foto de Toinho Castro]

Era o ano da graça de 1990, 14 anos após o lançamento do disco. Certamente num arroubo de nostalgia, Tuca dedicou seu amor Lelena, numa véspera de 7 de setembro que sabe-se lá o que significava para os dois. Sabe-se lá quantas vezes Lelena escutou Caravana pensando em Tuca antes de livrar-se do disco. Ou morrer, ou partir… ou o que? Hoje, ouvindo Caravana, penso no amor de Tuca e Lenena, inutilmente. A escritura lavrada desses dois amantes me tem por testemunha. Dou fé.

Ou ainda essa descoberta que devo a outro amigo, o livreiro Francisco Olivar, que me ofertou essa joia. Uma edição de uma palestra do poeta pernambucano Mauro Mota, sobre o São João no Nordeste. Para nosso maravilhamento, a brochura traz uma dedicatória do poeta ao tio Mandú e os primos. Que singeleza. O ano é de 1953 e o poeta estava no Rio de Janeiro. No ano anterior ele havia publicado seu livro de poemas Elegias, que comprei e que traz também uma dedicatória do poeta, ao seu amigo Raimundo. Parece-me que Mauro Mota era generoso com suas dedicatórias.

[Foto de Toinho Castro]

Será a dedicatória uma arte morta? Será que temos que empreender sua arqueologia e datar com carbono seus exemplares cada vez mais raros? Será que ao pegar um livro dedicado, daqui a alguns anos, ainda saberemos o que significa? Ou será como esses objetos misteriosos cuja função perdeu-se nas sombras do tempo? Cortázar comenta sobre isso no seu Jogo da Amarelinha

Penso nos gestos esquecidos, nos muitos salamaleques e palavras dos nossos avós, pouco a pouco perdidos, não herdados, caídos um atrás do outro da árvore do tempo. Esta noite encontrei uma vela sobre a mesa e, para brincar, acendi-a e andei com ela pelo corredor. O ar causado pelo movimento ia apagá-la e, então, vi levantar-se sozinha a minha mão esquerda, abrigando e protegendo a chama como uma cortina viva que afastava o ar. Enquanto o fogo se endireitava, outra vez alerta, pensei que esse gesto fora o gesto de todos nós (pensei nós e pensei bem, ou senti bem) durante milhares de anos, durante a Idade do Fogo, até que a trocaram pela luz elétrica. Imaginei outros gestos, o gesto das mulheres levantando a ponta da saia, o gesto dos homens procurando o punho da espada. Como as palavras perdidas da infância, escutadas pela última vez na boca dos velhos que iam morrendo. Em minha casa já ninguém diz “a cômoda de cânfora”, já ninguém fala das “trebes” – as trébedes. Como as músicas do momento, as valsas dos anos vinte, as polcas que enterneciam nossos avós.
Penso nesses objetos, nessas caixas, nesses utensílios que aparecem às vezes em galpões, em cozinhas ou esconderijos, e cujo uso já ninguém é capaz de explicar. Vaidade de crer que compreendemos as obras do tempo: o tempo enterra seus mortos e guarda as chaves. Somente nos sonhos, na poesia, no jogo – acender uma vela, andar com ela pelo corredor -, aproximamo-nos às vezes do que fomos antes de ser isto que ninguém sabe se somos.

Posso imaginar uma versão alternativa de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, em que as pessoas preservam, ao invés das histórias dos livros, suas dedicatórias. Suas sombras em volta da fogueira, narrando essas mínimas histórias de amor ou até cinismo, por gerações.

Certa feita alguém da família recebeu um presente de uma amiga ou parente. Finda a festa, essa minha foi abri-lo e descobriu que esse presente, na verdade, havia recebido de outra pessoa e agora estava sendo passado adiante sem maiores pudores. No verso do presente foi descoberta a seguinte dedicatória:

Para Fulana, com um beijo de Judite

Meus primos certamente contarão melhor essa história, sem incorreções. Mas para todos os efeitos posso dizer que, na minha família, Beijo de Judite virou senha para repassar um presente para outra pessoa.

— Ah, não sei o que dar para Beltrano.
— Ora, dá um Beijo de Judite!


No texto A peleja de Zé Limeira e Orlando Tejo, publicado aqui Kuruma’tá, fazemos menção a uma poética e um tanto misteriosa dedicatória que abre um exemplar de Zé Limeira, o poeta do absurdo, de Orlando Tejo. Uma daquelas dedicatórias que parece enredo de filme ou cordel.

Quem ou o que será o “Vento Leste”?


E encerrando, fica a dica da Amiga-Kuruma’tá Anne Rocha! O projeto Eu te dedico, site que traz uma compilação de livros com dedicatórias, com as histórias possíveis que carregam, o charme das caligrafias e as esperanças e promessas.
Visite: http://eutededico.com.br

“Um livro com dedicatória é um livro com duas histórias, uma que começa no primeiro capítulo e uma que começou antes de se passarem as páginas.”