Páginas de Poesia Galega

Texto de Toinho Castro


A gente sempre acha que viajar é pegar um trem ou avião, ou algum meio de transporte, atravessar distância e chegar a outro lugar, seja uma cidadezinha no interior de Minas Gerais ou um país margeado pelo mar Adriático. Há os que fazem viagens de ácido e viagens espirituais. Mas exste ainda um outro tipo de viagem. A viagem dos idiomas. Pois conhecer outro idioma é viajar, ultrapassar barreiras muitas vezes maiores até que a distância. Passagens no tempo, no corpo, nas culturas.

No ano passado fiz uma dessas viagens, no lombo de um idioma, o Galego. Na verdade naquela tarde de maio, enquanto assistia a Jornada 2018 de Letras Galegas, eu apenas iniciava a viagem que ainda segue seu rumo. Levado até ali, o Instituto de Letras , da UERJ (Viva a Universidade pública!), pela amiga e artista multimeios de muitas mídias, Paloma Klisys, me pus a ouvir e aprender. Paloma foi até lá para participar do encontro, relatando a experiência da sua viagem (de avião!) até a Galícia, ou Galiza, numa busca e reencontro dos caminhos da sua família até o Brasil. Foi lindo de se ouvir. Foi lindo ouvir o galego sendo falado ali, natural e espontâneo. Uma língua mais que viva, vívida e tão chegada a nossa. Despertou-me um sentimento de ancestralidade, caminhos cruzados, nascentes comuns de rios caudalosos.

A Galícia é uma região da Península Ibérica, fronteiriça com o norte de Portugal, sendo ainda uma Comunidade Autônoma Espanhola. Longe de mim agora tecer comentários sobre a história desse povo e suas circunstâncias políticas. Tal conversa pede-me muito estudo ainda, muito conhecimento a ser adquirido. Basta dizer que é um povo com sua cultura, riquíssima, sua língua própria, com a qual se sonha, escreve-se cartas, poemas, canções. E foi sobre esse mundo complexo, mirando futuros possíveis, que todos ali versaram.

Uma professora, que participava também do encontro, anunciou que falaria em galego, e que qualquer dúvida ou dificuldade de entendimento ela poderia clarear para nós, ouvintes. Ela começou então a falar e me veio o encanto mas também o inesperado sentimento de ignorância, como se encontrasse um irmão que eu sabia da existência num lugar qualquer da minha mente, mas que ali, diante de mim eu reconhecia profundamente e me perguntava: por onde você andou? Por onde eu andei que estava assim como quem não sabe de você?!

Foram algumas horas iluminadas naquele pequeno auditório da UERJ (Longa vida à Universidade Pública!), escutando vozes e sotaques e uma língua irmã. Num intervalo fui até uma varanda do prédio em que estávamos e pude ver o sol que já se encaminhava para o poente, brilhando sobre a Mangueira. Acho esse tipo de deslocamento sempre interessante. Quando em pleno Rio de Janeiro, juntinho da Mangueira, do Maracanã, abre-se um portal e alcançamos a Galícia, seus falantes nativos, esperanças poderosas e o escrever da história com gestos mínimos. Simples assim.

Quando passo por essas experiências, o que eu faço? Eu procuro livros. Então bastou eu chegar em casa para vasculhar o mundo em busca da poesia galega? E por que a poesia? Porque não há lugar melhor para se dar com um idioma. A poesia é onde uma língua canta e dança, onde ela se enfurna por corredores de luz e sombra. É onde ela nos surpreende e nos cativa. E em meio aos livros que descobri, em número maior do que eu esperava, achei por bem escolher um chamado Antologia de Poesia Galega, organizado por Yara Frateschi Vieira e publicado pela Editora da UNICAMP em 1996, integrando a Coleção Matéria de Poesia. Repleto de notas, observações e muita contextualização, histórica e artística, o livro é um panorama abrangente e emocionante da poesia produzida na Galícia. Uma riqueza, como diria a minha mãe.

Livros assim eu chamo de livro para sempre, pois é leitura para o resto da vida, um livro ao qual se retornar sempre, sem nunca esgotá-lo. Há livros que se prestam a uma leitura dinâmica, desses que parecem engolir a gente num turbilhão e quando menos esperamos estamos na última página. Um livro assim, como Antologia de Poesia Galega, é diferente. É como o livro de areia de Jorge Luis Borges, não tem princípio ou fim aparente; abre-se em qualquer página e navega-se. E sempre será como novo. As poesias nele constantes não são traduções, são originais, publicadas em galego. Isso nos traz a oportunidade de conhecer o galego, suas familiaridades, todos os X distribuídos nas palavras, nos versos, como se fossem marcações num mapa apontando tesouros.

Tomo aqui a liberdade de reproduzir o trecho inicial de um dos poemas do livro:

Trecho do poema VINGANZA DA CIDADE, DO TEMPO E DESTE DIA, de Pilar Pallarés (Pag. 360)

I

Ficou baleira a cidade dos meus ollos buscando-te,
a balbúrdia dos autos ocupou o lugar
da voz que te chamava.

A cidade existe por si mesma.
Xa non é o escenário
da paixón que me levava cara a ti
(seta de ouro ou chumbo, di-me,
nesta hora?)

Lonxe, moi lonxe, soa
unha canción insuportavelmente triste.
Unha luz de astro esgotado
desce sobre a tarde.

A cidade existe, indiferente.
O nosso amor morreu.
(Seta e ferro ardente, mira,
nos meus olhos.)


O livro é instigante e o trabalho de Yara Vieira Frateschi, seleção, organização, introdução e notas, é completo. O livro traz ainda bibliografias, referências, glossário, que ajuda muito a gente na leitura dos poemas, e ainda um caderno de ilustrações que amplia nossa noção da arte galega. É um livro sobre poesia mas também sobre uma língua, sobre um povo e seu lugar no mundo. Escreve ela na introdução:

No entanto, o que encontrarão os leitores brasileiros no seu contato com a poesia galega? O semelhante mas também o diferente, a experiência compartida e a intransferível, a paisagem ímpar, sempre vista através de uma cortina de névoa ou de água, o sentimento da terra e do homem, a melodia da língua em que nos reconhecemos, mas que nos põe também diante de um vocabulário espesso, saído de camadas prístinas do trbalho da terra e da nomeação do natural, a cultura em que escavamos parte do nosso passado arqueológico, a convivência de problemas e épocas comparáveis: a descolonização e a repressão, a emigração, as margens sociais. Além disso, a experiência de uma poesia pouco ou quase nada conhecida, e que de fato não defrauda.

(Antologia de Poesia Galega, pág. 18)

Escrevo aqui como leitor encantado, e convido você, também como leitor, a abrir essa porta e adentrar o território da Galícia pelos caminhos de sua poesia. É um livro que você não vai encontrar em qualquer livraria, mas uma busca simples vai te levar até ele sem maiores dificuldades. E a partir daí, do dia em que ele chegar na sua casa, vai ser uma boa surpresa atrás da outra, página por página de um reencontro com algo que, se não sabíamos, desconfiávamos.


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