Mexendo a terrina com Setembrina! – As Lágrimas de Paulo César Feital e Lucas Bueno

Texto de Toinho Castro


Lucas Bueno e Paulo César Feital / Foto: Divulgação

Saindo da primeira audição do disco Lágrimas, de Lucas Bueno com seu parceiro Paulo César Feital. E como é que se fica depois de escutar um trabalho como esse? A alma da gente oscila entre chamar a vizinhança para cantar e dançar e sair correndo para a rua e sacudir as estruturas sociais. Talvez as duas coisas possam ser uma só, unidas em harmonia na música dessa dupla fantástica. Lucas é pianista, violonista e compositor de primeira linha, com parcerias com nomes como Ana Terra, Moyseis Marques, Chico Alves, Iara Ferreira, Joana Hime e Maria Vilani. Paulo César Feital soma com mão cheia parcerias com João Nogueira, Nelson Cavaquinho, Hélio Delmiro, Jorge Aragão, Claudionor Cruz, Guinga, Luiz Eça, Roberto Menescal, Altay Veloso entre outros, numa lista de dar gosto. E como samba é gente junta, encontro, parceria, os dois, lado a lado, empunham as pérolas de Lágrimas.

As dez músicas do álbum enfileiram a tal diversidade da música brasileira mais enraizada, da qual tanto se fala e cada vez menos se pratica. Minto! A variedade de sons e tons do nosso cancioneiro está aí sim, é só sair do mainstream, tirar os olhos dos grandes painéis corporativos para ouvir o ritmo do Brasil pulsando nas ruas, nas rodas de choro nas praças, nas rodas de jongo, nas vozes de novas gerações que se anunciam com muito talento. Lágrimas está de olho nisso tudo, sintetiza um país que ousa e não se cala por meio de sua música.

O disco anuncia a que veio abrindo com o Samba pra Darcy Ribeiro, mandando ver no Eu sou brasileiro. É uma afirmação em primeira pessoa mas de espírito coletivo. É, na verdade, um chamamento num samba elegante e emocionante. E depois disso você só pode continuar, recebendo essa dose na medida daquilo que somos. É de arrepiar, sobretudo se você pensa que somente começou.

Não me chamem pra porrada
Não me chamem pra salseiro
Gosto é de jogar pelada
De abraçar meus companheiros
Tenho a alma enamorada
Como a de Darcy Ribeiro
(Da letra de Um samba para Darcy Ribeiro)


Daí abrem-se caminhos pela Vila Mimosa, pelas veredas de Guimarães Rosa, terreiros e cabarés, Ariano Suassuna, o picadeiro aberto do circo que se armou na nossa alma. É pouco não! E pra completar a riqueza do disco, duas faixas são parcerias com o grande João Nogueira. O jongo Setembrina e o baião Pão com Goiabada foram iniciadas por João mas estavam incompletas. Pão com Goiabada partiu de uma melodia soprada por João que Lucas levou adiante, com letra de Feital. Para Setembrina João nos eixou o refrão de beleza inacreditável, que Feital completou com sua letra, segurando o rumo da prosa, ou do verso. Lucas chegou completando a melodia. O resultado… se por um lado deixa na gente com aquela saudade, aquele João, que falta você faz, por outro nos brinda com o sabor da continuidade, do legado.

Minha Vó dançava jongo enquanto mexia a terrina
Minha Vó dançava jongo enquanto mexia a terrina
Pra descer seu Zé do Congo e a velha Setembrina
Quando Erê tocava o gongo
Vovó virava menina
(Refrão encantado de Setembrina)


No disco, numa música depois da outra, apresenta-se o Brasil que resiste, que não desiste de se esgueirar nas fissuras. É um disco que se insurge porque é foda ver o que a gente anda vendo pelas ruas, redundando nas TVs. É sangue o suor brasileiro / Que rega os jardins d´ambição. É poesia contra a brutalidade que quer se impor e pautar o cotidiano. Por isso a importância da música, da dança, do samba, do choro. Por isso empunhar violão e reunir os amigos para cantar, nesse disco de muitas vozes (Literalmente, com participações especiais de Moyseis Marques, Nina Wirtti, Soraya Ravenle, Vidal Assis e Claudio Nucci) em que fala alto a diversidade. É um Estamos aqui! cantado em alto e bom tom, afirmado na praça, no terreiro onde Setembrina dançava o jongo e mexia a terrina. Um disco pra servir de mapa e de farol, pra quando você tiver alguma mínima dúvida de onde fica o Brasil.

Senhora de Aparecida
Mãe do Brasil, ora yê yê ô
Mamãe Oxum
Aplaque essa ira contida
Entre teus filhos
Ogunhê , meu Pai Ogum
(Da letra de Um samba para Darcy Ribeiro)