Texto de Rodrigo Ribeiro
A Revista Kuruma’tá segura a cadência da poesia e traz uma colaboração preciosa do carioca Rodrigo Ribeiro, sobre o poema O lutador, do mineiro de Itabira Carlos Drummond de Andrade. Rodrigo Ribeiro também luta com palavras como professor e pesquisador do Departamento de Filosofia da UNIRIO e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFRN. É autor de “Alienações do Mundo: uma interpretação da obra de Hannah Arendt” e outros trabalhos com ênfase em Filosofia Contemporânea.
Os versos do poema “O Lutador” de Carlos Drummond de Andrade nos falam sobre uma luta travada “com palavras”, ou seja, no seio da linguagem. Leiamos o poema:
Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.
Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssimas
e viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue…
Entretanto, luto.
Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.
Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.
Iludo-me às vezes,
pressinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
aquela sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas ai! é o instante
de entreabrir os olhos:
entre beijo e boca,
tudo se evapora.
O ciclo do dia
ora se conclui
e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.
O poema nos fala de uma luta “vã” porque “jamais se resolve”. Essa luta possui o caráter de uma irresolução que se inicia “mal rompe a manhã” e “prossegue nas ruas do sono”. Trata-se de um combate tão vão que não tem nem vencedor nem vencido. As palavras incitam ou provocam o combate. Mas quem é o lutador incitado? Quem já acorda tendo que aceitar a provocação desse combate e vai dormir ainda desafiado na urdidura dos sonhos? Quem é esse estranho lutador que, por mais que se arrisque, jamais será morto enquanto durar esse combate, visto que nele consiste toda a vitalidade de sua vida? O lutador somos nós. Nós quem? O que somos? Nada antes nem depois de lutarmos com as palavras. Até mesmo para sabermos quem ou o que somos já nos encontramos subitamente imersos e inseridos no combate com a linguagem. Como dizia o poeta Octávio Paz: “A palavra é o próprio homem. Somos feitos de palavras. Elas são nossa única realidade ou, pelo menos, o único testemunho de nossa realidade”. A luta para a qual somos continuamente desafiados é com as palavras e nunca contra elas, pois estaríamos lutando contra a nossa própria sombra. Mas que tipo de luta será essa? O que significará “lutar com palavras”? Será exclusividade do poeta? Será apenas o poeta o lutador? Estará na luta com as palavras apenas aquele que se dedica ao que Hölderlin chamou de “a mais inocente de todas as ocupações”?
Sem dúvida, o poeta é um lutador exemplar, mas essa luta não está circunscrita apenas ao fazer poético, ou seja, um âmbito estritamente literário. Convido o leitor a enxergar nessa luta um sentido mais amplo, ou seja, o acontecimento da própria linguagem como aquilo sobre o qual se funda a presença dos homens no mundo, ou ainda, a luta poética que reside no seio do existir humano. Como diz Hölderlin, “poeticamente o homem habita esta terra”, a própria presença do homem no mundo está sempre em luta com as palavras e, assim, é poética, pois o existir humano acontece poeticamente, instaura-se a partir da luta com as palavras, ou seja, no seio da linguagem. “Mal rompe a manhã” e já estamos sempre inseridos em uma relação com nosso entorno através da linguagem.
A luta poética, portanto, ultrapassa o meramente literário e alcança a dimensão em que se funda a habitação humana no mundo, pois nessa luta se encontram unidas e tensionadas poesia e vida. A existência humana é poética porque mora na linguagem, porque a linguagem é a morada do mundo e porque o mundo é o ringue de uma ininterrupta luta com as palavras. A linguagem não é aqui apenas uma expressão oral ou escrita ou uma mera comunicação, mas a própria luta poética na e pela qual o mundo é conduzido à manifestação. Trazer e conduzir do encoberto para o desencobrimento é o que os gregos denominaram como poiesis, a produção, a criação (pro-ducere: levar, ducere, diante de, pro: conduzir ao ser o que ainda não era). É poético tudo que põe em obra ou opera o combate no qual acontece a luta pela abertura do mundo, uma interminável luta entre desencobrimento e encobrimento, uma luta para manter aberto e manifesto o mundo como morada dos homens. Trazer o mármore até a estátua, conduzir o som à glorificação musical, desencobrir a cor na pintura e conduzir a palavra ao poema são formas dessa luta poética posta em obra nas obras de arte. Mas em muitos outros campos da poiesis acontece essa luta por trazer (ducere) o aberto do mundo para diante (pro), sem, contudo, jamais obter uma abertura total e absoluta que eliminasse a própria luta e transformasse o mundo em mero palco rígido de coisas simplesmente dadas e disponíveis para a representação.
O poema de Drummond nos fala da luta “com as palavras” e, assim, enfatiza a contenda com a linguagem. “Eis porque o mais perigoso dos bens, a linguagem, foi doado ao homem […]: para que testemunhe sobre aquilo que ele é”, diz Hölderlin. De início e na maioria das vezes, só lembramos expressamente da linguagem e das coisas que nos rodeiam como banalidades cotidianas que se compreendem por si mesmas. O acontecimento das coisas é demasiadamente trivial e familiar para ser imediatamente digno de nota. No mais das vezes, estamos satisfeitos em dizer muitas coisas sobre as coisas e em ter as coisas prontas para o uso diante de nós. Nem sempre satisfeitos com as coisas, mas sempre com tê-las “diante”. Tanto que a suposição de que as coisas possam não mais estar aí “diante de nós” provoca-nos a angústia diante da morte. Na imensa maioria das vezes, lutamos para saltarmos para fora dessa luta com as palavras. Mas sempre somos atingidos por sua força secreta, muitas vezes sem saber ao certo o que nos acontece. Dizer que “lutamos com palavras” e que somos “feitos de palavras” significa afirmar que a linguagem é nossa via de acesso ao mundo e ao pensamento. A linguagem (em sentido amplo, englobando língua, fala e palavra) é uma dimensão fundamental de nossa experiência que instaura e orienta os relacionamentos dos homens com eles próprios, com o mundo e com os outros. Lutamos com palavras para que o mundo configure sentido a ser apreendido e compartilhado pela linguagem. O lutador é um vivente que mantém e exerce sua vida numa luta com as palavras porque são elas que conferem unidade para a multiplicidade das coisas que nos rodeiam, demarcando valores e instaurando sentido, diferenciando e separando cada coisa em seu aspecto, em sua realidade, mostrando seu limite, determinação, nome. Lutamos com palavras porque somos rodeados por nomes que formam o limite e a realidade do que somos, do que nosso mundo é. É sempre a partir da luta com as palavras que se instaura um universo de sentido e compreensão no interior do qual as coisas vêm ao nosso encontro, propõem-se como isso e aquilo, manifestam-se em seus aspectos e determinações, valores e significações, identidade e diferença, etc. Ora, se a palavra é aquilo que deixa o mundo aparecer e se somos aquele que, para viver, precisam lutar com as palavras, então, isso significa dizer que o homem é o lutador, pois precisa estar encarnado em um mundo para viver. O mundo é sempre o ringue dessa luta diária por sentido e compreensão, orientação e valor no universo das realizações, no mundo dos usos e afazeres em que estamos sempre e a cada vez imersos e inseridos. Somente o lutador precisa estar presente no ringue do mundo para ser e se realizar, ou seja, somente o lutador, para vir a ser o que é, precisa dizer o ser das coisas e até mesmo o ser que ele próprio é. A pedra não precisa dizer para ser, os animais não precisam simbolizar a vida para viverem, a cadeira não precisa pensar na existência para existir, mas, para o lutador, viver é ter que dizer e elaborar a experiência com palavras na direção de significações jamais absolutas ou definitivas. Mas os demais seres, vivos e inanimados, não estão nessa luta? Eles não podem ser estranhos em suas próprias casas? Não estão todos os seres no ringue do mundo em sua totalidade ou a luta só ocorre naquele ser para o qual o próprio ser das coisas se abre na totalidade? A expressão “na totalidade” não significa apenas que, pela linguagem, o ringue no qual está inserida a luta com as palavras é quantitativamente maior e abrangente, mas, sobretudo, qualitativamente diferente do fenômeno vital. A origem e o sentido da abertura ao exterior que ocorre no animal, como simplesmente vivente, são inteiramente distintos da origem e do sentido da abertura para o mundo enquanto tal que se revela ou se desencobre ao homem. O animal se comporta em um ambiente, mas não em um mundo. Por exemplo, como ensina o famoso biólogo Jakob von Uexküll, quando alguém secciona o ventre de uma abelha e a coloca diante de uma porção de mel, seu instinto é o de sugar essa substância indefinidamente, pois não estando nunca cheia de mel, ela será cativa de seu instinto, das pulsões que a ligam ao seu ambiente de forma imediata. Outro exemplo: entre o mundo da aranha que tece sua teia de modo a torná-la invisível para pequenos insetos e a mosca que eventualmente cai presa dessa armadilha existem duas séries de acasos biológicos que se integram. A aranha nada sabe da mosca como tal; a mosca nada sabe da aranha como tal. Como diz Cassirer: “Entre o sistema receptor e o efetuador, que são encontrados em todas as espécies animais, observamos no homem um terceiro elo que podemos descrever como sistema simbólico. Essa nova aquisição transforma o conjunto da vida humana. Comparado aos outros animais, o homem não vive apenas em uma realidade mais ampla; vive, pode-se dizer, em uma nova dimensão de realidade”. Nessa nova dimensão simbólica, o mundo se manifesta como o ringue de uma luta com as palavras em nome de uma abertura de sentido e compreensão. Que a própria linguagem venha sendo determinada pela informação e operatividade técnica na comunicação já nos revela algo sobre nosso mundo atual. A mera troca de mensagens a serviço de tarefas predeterminadas torna indiscerníveis o homem, o animal, o organismo e a máquina, em nome da homogeneização, controle, funcionalização e operacionalização do real, reduzindo as relações entre homem e mundo às questões do trabalho, do consumo, das funções vegetativas, busca de certeza e segurança.
O homem é o lutador porque é “feito de palavras”, isto é, porque busca dizer o que as coisas são a fim de se pôr em acordo com elas, consigo mesmo e com os outros que também lutam com as palavras em nome de um mundo comum. Só a violência é muda e interrompe a luta com a palavra, pois o lutador se corresponde a um mundo compartilhável de coisas e significações no qual outros participam conosco. O mundo é o ringue dessa luta com as palavras porque os lutadores precisam de uma brecha para o aberto do mundo. A presença do homem no mundo se funda na palavra e pela palavra. “Nenhuma coisa existe onde a palavra falta”, diz um famoso verso de Stefan George. A linguagem faz imperar no homem um combativo pertencimento ao ser pela linguagem. Como ressalta Heidegger, “ainda que tivéssemos mil olhos e mil ouvidos, mil mãos e mil outros sentidos e órgãos, se, porém, a nossa essencialização não consistisse no poder da linguagem, permanecer-nos-ia fechado e vedado a realidade em seu todo: a realidade que nós mesmos somos, não menos do que a realidade que nós mesmos não somos”. As palavras não compõem um repertório de signos, regras gramaticais e sintaxe, mas sim algo que atravessa e domina o lutador em seu encontrar-se situado e lançado no ringue do mundo, aberto e exposto ao real como um todo. As palavras não podem ser encontradas dentro do mundo como coisas dentre outras, pois elas envolvem o lutador de tal modo que a luta se estabelece somente a partir de certa relação com a linguagem, organizando, orientando e definindo, de diferentes modos, a presença humana no mundo. É sempre no seio da linguagem ou a partir da luta com as palavras que o mundo e a presença do homem nele chegam a se manifestar, assumindo aspectos e determinações, identidades e diferenças, valores e significações, ordem e forma. Vê-se que o homem e as palavras estão tão um dentro do outro que perguntar pelo que é e para que serve a linguagem já sempre será perguntar sobre o que é e para que serve a própria existência humana e o que pode lhe conferir sentido, determinação e valor. Por isso dizia o poeta americano William Borroughs que a linguagem é um vírus, isto é, um vivente que vive quando se hospeda em outro (o homem). O homem existe como homem porque se hospeda na linguagem. Indagar o que são linguagem e realidade será sempre espantoso, visto que ao interrogá-las nos encontramos sempre já dentro delas e de tal modo constituído por elas que somos incluídos na própria interrogação. Esse movimento circular ocorre porque, investigando o que são linguagem e realidade, nunca nos sentimos seguros e apaziguados, visto que, ao contrário de todo aquietamento e asseguramento, esse questionamento será tanto mais significativo quanto mais não pudermos saber se somos os questionadores ou os questionados. Por isso dizia a poetiza Adélia Prado: “Quem entender a linguagem entende Deus/ cujo Filho é Verbo./ Morre quem entender./ A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,/ foi inventada para ser calada./ Em momentos de graça, infrequentíssimos,/ se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão./ Puro susto e terror”.
Mesmo quando cala ou silencia, o homem não pode impedir que a linguagem faça dele um lutador para o qual o próprio acontecimento dos seres em geral se manifesta como um ringue. A linguagem abarca a totalidade da nossa experiência porque instaura a própria experiência da totalidade das coisas que são. O lutador já sempre se pronunciou sobre o mundo em sua totalidade. E isto não pelo fato dele falar expressamente sobre as coisas. Ser lutador já significa deixar as coisas em geral se manifestarem no seio da linguagem como isso e aquilo. Inserido na luta, ou seja, na abertura dessa correspondência ao mundo na e pela linguagem, o lutador não se acha no meio da natureza, ao lado das árvores, animais e coisas, pois ele não ocorre justaposto ao lado dos outros seres. A luta abre o acontecimento do próprio mundo como linguagem. Mas “totalidade” não quer dizer “totalização”, porque as palavras nunca excluem de si mesmas o inefável, o dito nunca exclui de si o não-dito e o indizível. Por isso as palavras “deslizam, perpassam levíssimas” e parecem “virar o rosto” para o poeta. Por isso a luta “parece sem fruto”, uma “caça ao vento” e as palavras parecem não ter “carne e sangue”, a cada dia “tudo se evapora” e a entrega nunca se consuma. Como diz Octavio Paz, “em um mundo regido pela lógica do mercado (…), pela lógica da eficácia, a poesia é uma atividade de rendimento nulo”. É que o poeta renuncia à posse absoluta da palavra. Essa renúncia decorre da condição de ser um lutador, isto é, sempre um estanho em sua própria casa. Como diz Octavio Paz: “o que caracteriza o poema é sua necessária dependência da palavra tanto como sua luta por transcendê-la”. O poema faz ver como a própria linguagem é uma luta ambígua. No uso corrente, as palavras são usadas e abusadas em suas funções comunicacionais. Mas, quando a linguagem aparece na poesia, as palavras deixam de ser ferramentas ao nosso dispor, prontas para o mero uso. Na luta poética, como diz Drummond, “as palavras serão servas de estranha majestade”.
A luta é tanto mais poética ou criadora quanto mais nasce e se frutifica sempre a partir e em torno do inefável e do inesgotável. Todo palavrório transmissor não pode não dizer, pois pretende neutralizar a luta com as palavras. Mas a luta do poeta é sempre um dizer que nunca diz de uma vez por todas. O dizer que não pode não dizer é um dizer informativo em busca da objetividade do que nós mesmos não somos. Um dizer que não pode não dizer não consegue abandonar, ocultar, deixar e esquecer nada. É um dizer que anula a luta ao pretender intransitoriedade absoluta. É um dizer que não admite obscuridade, opacidade, contradição, ambivalência, o insondável, a experiência inexaurível, a incerteza, nenhuma contenda. Como diz Octavio Paz: “A palavra poética jamais é completamente deste mundo: sempre nos leva mais além, a outras terras, a outros céus, a outras verdades. A poesia parece escapar à lei de gravidade da história porque sua palavra nunca é inteiramente histórica. A imagem nunca quer dizer isto ou aquilo. Sucede justamente o contrário, como já se viu: a imagem diz isto e aquilo ao mesmo tempo. E mais ainda: isto é aquilo”. O “não” do “não dizer” poético não é, porém, algo negativo e faltoso, mas sim positivamente doador e inesgotável. É o “não” que jamais busca ser superado, resolvido, eliminado, mas, única e somente, preservado. Trata-se de um “não” vital, o “não” irreprimível da vida, esse que possibilita que a vida nunca deixe de seguir vivendo. Esse “não” é o sendo do ser, o que faz do ser um verbo e a infinição de um gerúndio: o andando do andar, o escrevendo do escrever, o aprendendo do aprender, o pensando do pensar, etc. A luta interminável com as palavras torna o poeta um estranho no lugar em que já sempre habita. Por isso, lutar com palavras é sempre um embate desconstrutivo com o já dito. Desconstruir não é destruir. É desfazer as construções, os hábitos de pensamento, sondando-lhes de onde eles puderam se constituir. Esse estranho trabalho de arquiteto, de desconstruir para habitar um aberto é o que caracteriza a tarefa filosófica tanto quanto a atividade poética. O filósofo e o poeta são lutadores exemplares porque são desabituados, comportam-se como estranhos no lugar em que habitam. Lutar com palavras é desconstruir o já dito e sabido e fazer aparecer o caráter sempre aberto e inexaurível da linguagem. A luta com as palavras apreende a vitalidade da vida em todas as suas formas, em todos os limites, em todas as configurações e modos. Lutar com palavras é se corresponder à vitalidade da vida.
Por mais estranha, marginal e curiosa que seja a sua circunstância, sua estadia e morada, o lutador não consegue se desconectar e se desprender da irrupção, da abertura ou da descoberta das coisas na linguagem. Como indaga Octavio Paz: “Se o homem é um ser que não é mas que está sendo, um ser que nunca acaba de ser, não é um ser de desejos tanto quanto um desejo de ser?” A linguagem atravessa, domina e reivindica de modo fundamental o lutador em seu combate com a totalidade, esta contenda que, continuamente e em qualquer situação, é necessariamente empreendida. “Luto todo o tempo”… Essa luta pelo pertencimento ao mundo por meio da linguagem faz com que o lutador nunca esteja no ringue como dentro de um universo meramente físico, pois o embate o coloca imerso e inserido em um universo simbólico. A luta com as palavras insere o lutador em uma ordem de existência que não é simplesmente natural (física e biológica), pois a linguagem converte o seu entorno de mero “meio biofísico” em mundo. Cassirer afirma que “a realidade física parece recuar em proporção ao avanço da atividade simbólica do homem. Em vez de lidar com as próprias coisas o homem está, de certo modo, conversando constantemente consigo mesmo. Envolveu-se de tal modo em formas linguísticas, imagens artísticas, símbolos míticos ou ritos religiosos que não consegue ver ou conhecer coisa alguma a não ser pela interposição desse meio artificial. (…) ‘O que perturba e assusta o homem’, disse Epíteto, “não são as coisas, mas suas opiniões e fantasias sobre as coisas”. A arte, a política e a filosofia são dimensões fundamentais dessa luta histórica com as palavras, essa constante contenda com a linguagem em nome da abertura do mundo. De tal modo que o poeta Hölderlin escreveu: “Muito experimentou o homem./Os celestiais muito nomeou,/Desde que somos uma conversa/E podemos ouvir uns aos outros”.
Estar aberto ao mundo ou inserido nesse combate com as palavras exige do lutador ordenar o que lhe é dado no mundo, dirigir-se a algo de outro, estar sempre com um outro e ter que fazer com que esse outro se instale na palavra e se ofereça, assim, como símbolo de um mundo comum. É tão espantosa essa luta que nela se revela o quanto o lutador está nela porque quer, pois a necessidade da luta não lhe é imposta automaticamente, não lhe é imposta por constrangimentos naturais, como nos demais seres vivos. O suicídio é uma experiência possível somente para um vivente cuja vida é vivida na luta com as palavras. O lutador é tão impregnado pela linguagem que a luta ultrapassa a vida biológica e exige dele valores e significações que tornem a vida digna de ser vivida. Muito mais que exigências orgânicas e imperativos da espécie, o lutador precisa satisfazer exigências de linguagem para viver, exigências de pensamento, de orientação, de valorização e significação. Somente o lutador carece de viver a vida em conformidade com um mundo, ou seja, um universo de sentido e compreensão dentro do qual as coisas manifestem sua realidade e suas significações. Mais que ser-vivo, o homem precisa cuidar da vida na e pela linguagem. Cuidar diz cultivar e cultivo diz cultura (vinda do verbo latino colere, que significa cultivar, criar, tomar conta e cuidar). Uma cultura é um conjunto de práticas, comportamentos, ações e instituições pelas quais os homens se relacionam entre si e com a natureza em geral, agindo sobre ela ou através dela, modificando-a. Este conjunto funda a organização social, sua transformação e sua transmissão de geração a geração. Como diz os versos de Octávio Paz: “A palavra do homem/é filha da morte./Falamos porque somos/mortais: as palavras/não são signos, são anos./Ao dizer o que dizem/os nomes que dizemos/dizem tempo: nos dizem,/somos nomes do tempo./Conversar é humano”. A cultura que emerge da linguagem não é feita de signos, mas de anos porque não apenas nos entrega o que fomos e nos convida a ser o que somos, mas, sobretudo, responsabiliza-nos pelo que nos tornamos no tempo histórico das realizações. Nas artes, na política, na filosofia, na religião, nas ciências, pensamos e falamos em uma luta com as palavras instauradas ao longo de um processo de transformação histórica de mais de vinte e cinco séculos. É nessa luta que se demarca a força espiritual de uma cultura, a força que insufla ou sopra (spiritus) o sentido do real nas mais diversas realizações. Na luta com as palavras se cultiva valores, línguas, ritos, criam-se leis, instituições, demarcam-se aspectos e diferenças, unidades e relacionamentos. É tudo isso que constitui um mundo. A luta com as palavras deixa um mundo aparecer e tornar-se manifesto. Nessa luta emerge uma cultura ou uma experiência de pensamento no interior da qual instaura-se o ringue no aberto do mundo.
Mas é preciso sempre ouvir a advertência intempestiva de Nietzsche aos “homens cultos” que se interessam pela cultura como “decoração ou adorno para a vida”: “O saber, consumido em excesso sem fome, sim, contra a necessidade, não atua mais como um agente transformador que impele para fora”. Portanto, o pensamento e a cultura são experiências fundamentais dessa luta com as palavras e, assim, não devem ser convertidos em meros objetos de estudo e consumo, isto é, como algo situado fora de nós, pois a cultura precisa ser o modo radical de ser e viver dos homens. Trata-se de uma luta porque a cultura não é algo pronto e acabado do qual podemos nos servir, e sim um estar exposto a um contínuo embate com o mundo, com os outros e consigo mesmo a partir de um universo de sentido, orientação e compreensão configurado historicamente no seio da linguagem. Nessa luta já estamos e nos movemos desde sempre. À intensidade com que somos atravessados e dominados por essa luta corresponde a raridade com que ela se nos apresenta enquanto tal. Só excepcionalmente nos voltamos propriamente para o mundo como lutadores, pois, no mais das vezes, só lembramos expressamente de nossa presença no ringue do mundo como algo que, para nós, compreende-se por si mesma. É por isso que o poeta é um lutador exemplar, ou seja, ele revela a luta enquanto luta. Como descreve J. Cocteau: “No instante de um relâmpago vemos um cachorro, uma carruagem, uma casa, pela primeira vez. Tudo o que oferecem de especial, de louco, de ridículo, de belo nos abate. Imediatamente após, o hábito apaga essa poderosa imagem com sua borracha. Fazemos festa ao cachorro, paramos a carruagem, habitamos a casa. Não os vemos mais. Eis o papel da poesia. Ela desvela, com toda a força do termo. Ela mostra nuas, sob uma luz que sacode o torpor, as coisas surpreendentes que nos circundam e que nossos sentidos registram mecanicamente”. De modo usual, a palavras são constantemente empregadas como moedas gastas que passam de mão em mão no nivelamento do uso corrente. Dizemos muitas coisas sobre todos os assuntos, muito por conta daquilo que se diz, como se passássemos cheques sem fundo de uma conta corrente cujo extrato nunca lemos. De início e na maioria das vezes, dispomos da linguagem como de um crédito concedido pela coletividade em que vivemos. De início e na maioria das vezes, vivemos como um autômato das palavras. Tudo aquilo que dizemos com uma palavra-moeda não é resultado de uma luta com as palavras, mas de um empenho de apaziguamento e de pacificação desse combate. Empenho nunca acabado, pois, paradoxalmente, não é exterior ao próprio combate e sim já é um modo de configuração da própria contenda com a linguagem. Lutamos com palavras também porque, de início e necessariamente, nós as herdamos como coisas dadas que se esforçam por colocar tudo e todos confortavelmente fora de combate. Mas não há nada para além ou para aquém dessa luta. Fugindo dessa luta originária resta a aglomeração entediante de coisas, onde já não se instaura nenhum mundo. De início e na maioria das vezes, o combate não se nos apresenta como combate, pois, como autômatos das palavras, vivemos na plena satisfação da existência dada. Só homens muito estranhos e combativos, tais como os poetas e os pensadores, de tempos em tempos, dão-se o trabalho de assumirem a luta com as palavras enquanto luta. Na luta com as palavras está posta em causa a coragem de pôr em questão a própria segurança e fiabilidade das “coisas”, pois todo peso parece desaparecer das coisas e se obscurece todo o sentido imediato. As coisas se transfiguram e parecem nos rodear pela vez primeira, como se antes nos fosse possível perceber-lhes mais a ausência do que a presença. Na luta poética do poeta, somos atingidos pela presença essencial das coisas. Por isso diz Heidegger: “o poeta fala sempre como se o ente se exprimisse e fosse interpelado pela vez primeira. No poetar do poeta, como no pensar do filósofo de tal sorte se instaura um mundo que qualquer coisa seja uma árvore, uma montanha, uma casa, o gorjear de um pássaro, perde toda monotonia e vulgaridade”. A poesia restitui ao mundo o seu peso ou a sua gravidade. O poeta mostra que “a linguagem é a casa do ser. Em seu abrigo habita o homem. Os pensadores e poetas são os guardiões desse abrigo”, como diz Heidegger. A luta com palavras mantém o mundo vivo. De tal modo que, para ser um autêntico lutador, não basta tomar conhecimento de algo, pois, como dizia um antigo professor-lutador, tomar conhecimento é uma capacidade que nos permite dispensarmo-nos de sermos o que conhecemos, arrancando do pensamento sua vitalidade. Em latim, arrancar se diz ab-strahere e arrancado ab-stractum. Para arrancar-se da alternativa de vida e morte, o conhecimento se torna abstrato. Abstrato quer dizer, em primeiro lugar e antes de tudo, fora da possibilidade de morrer e viver para poder estar todo dentro da segurança do poder. O ideal de todo “homem culto” é conhecer sem ser. Neste sentido, o conhecimento da cultura como fim em si mesmo visa a conhecer o amor sem amar, conhecer a vida sem viver, a morte sem morrer, conhecer a meditação sem meditar, conhecer o pensamento sem pensar, conhecer as palavras sem lutar com as palavras, conhecer a luta sem nela entrar, tomar conhecimento da luta sem ser um lutador.
Ótimo texto. Amplia e aprofunda o pensamento do poeta.