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contra o desencanto

Elton e Diadora

Revista Kuruma'tá, 3 de agosto de 20198 de março de 2021

Texto de Adriana Nolasco


Elton é chaveiro. Se interessa principalmente pelos tipos de chaves que abrem coisas que não existem mais. Trabalha na mesma esquina desde os cinco anos de idade quando começou a acompanhar o pai, que acompanhou seu próprio pai, que por sua vez acompanhou o pai que também acompanhou aquele que, se dizia, era seu pai. O que fazia daquela esquina um pedaço da sua carne.

Elton John, ariano e vegetariano, assim se chamava porque sua mãe foi a um show na Praça de Espanha, fazia muito tempo, e se apaixonou.

Não pelo Elton (John), mas pelos óculos que usava, pelas roupas brilhantes que vestia e pela mulher que transbordava daquela pele de homem, assim como das suas calças apertadas e do suor que borrava parte de sua maquiagem. Elsa se encantou. Por causa desse tesão repentino, que lhe consumiu as poucas calorias que restavam, a mãe de Elton baixou a própria pressão e se fixou noutros óculos (como uma tábua de salvação). Antes de desmaiar lhe sussurrou um poema sujo e lhe agarrou as bolas, coisa que nunca tinha feito antes. Nove meses e cinco dias depois nascia Elton John de Oliveira.

Seu pai, Fernando, o Oliveira, ainda usa os mesmos óculos, agora com lentes um pouco mais grossas porque está velho e também porque sempre teve dificuldade de ver certas coisas que Elton, por sua vez, sempre viu, com precisão.

Vê, por exemplo, que o pai que usa óculos cada vez mais grossos e conserta chaves cada vez mais complexas começou a esquecer onde deixa as de casa. Esquece também outras coisas tais quais as razões de sua própria vida. Elton também vê que um dia vai acabar substituindo o pai naquela esquina, porém procura não pensar muito nisso, ao contrário. Na maior parte das vezes evita mesmo pensar, o que em geral o leva a pensar ainda mais, casos em que, quando pode, se refugia no banheiro e toma longos banhos. O ideal é quando consegue sair com os dedos dos pés e das mãos enrugados como um pergaminho. E se não tiver um menino que o acompanhe naquela esquina, a esquina irá acabar?

Elton levou exatamente 5 anos e 10 dias para aprender a amarrar seus sapatos e sabe cantar, no momento, precisamente 27 canções. Também faz as melhores chaves e percebe principalmente as pequenas coisas. Quanto menores, melhor. Naquele dia foi chamado de emergência no plantão. Teve que subir as escadas porque faltava luz no prédio velho, azul e encantador. O porteiro que dormia nos intervalos de cada quarto de hora lhe avisou: quarto andar. Diadora. Quarto de dormir. Andar à toa. Dia de sol. Amadora. Achou que era uma brincadeira, mas subiu assim mesmo, lembrando dos jogos de criança, quando amava a escuridão, o que lhe dava grande vantagem.

***

A sorte pode ter formas estranhas, pensou Diadora, é preciso ter olhos bem abertos pra perceber, mesmo que tenha telefonado e chamado por ela. Diadora tinha medo. Da chuva, da tempestade, de portas fechadas, da desesperança. Elton (John) não, tanto que subiu as escadas do prédio azul, velho, encantador e sem luz, quase feliz. Ao chegar, guiado pelo branco daqueles olhos, repetiu: chaveiro, quarto andar. Diadora. Quarto de dormir. Andar à toa. Dia de sol. Amadora. Diadora achou graça naquilo e perdeu seu medo em algum canto do corredor, mas não se importou. Não teria mesmo como recuperá-lo naquele momento, havia outras prioridades. Se cumprimentaram ao som de um trovão. Diadora tremeu por outro motivo. Já Elton elogiou sua roupa, que combinava mesmo com a escuridão, e pediu que se aproximasse da fechadura para que os faróis de seu rosto a iluminassem. Nunca levava uma lanterna consigo, tal qual as pessoas que amam a chuva sempre perdem seus guarda-chuvas, suas canetas bic e seus isqueiros. Era considerado estranho por isso, porém não se importava. Elton também tinha sorte. Alguma. De rosto colado ao de Diadora, além de sentir a frescura e maciez de sua pele, pode ver o que precisava resolver. E levou exatos cinco minutos, tempo que em geral aprendia uma música inteira, pra consertar a fechadura que, no entanto, não estava quebrada. Elton explicou para Diadora que nesse caso, e na maioria deles, o problema era a chave que abre as coisas. Elton consertou a chave, abriu a porta e teve a impressão de ter aberto outras coisas também, mas não soube precisar. O que conseguiu fazer foi dizer que amava a chegada das tempestades, quando o céu gritava e o vento cuspia folhas como confetes. A luz voltou como uma raio. Elton se assustou com tanta clareza e após entregar um folheto de propaganda para Diadora, se despediu e esqueceu de cobrar pelo serviço. Já Diadora se esqueceu de quem era. E simplesmente entrou. As portas estavam abertas. A sorte sempre chega em horas inesperadas. A luz também. Era nove e meia da noite. A chuva tinha finalmente parado.


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Comments (14)

  1. graça porto disse:
    3 de agosto de 2019 às 11:24

    Amei o texto da Adriana. Delicado e original. Muito bom.

    Responder
  2. Suzana schmidt nolasco disse:
    3 de agosto de 2019 às 11:49

    O texto de Adriana é como ela… original! Doce e salgada ao mesmo tempo Vai num crescendo que desperta no leitor uma tensão: o que vai acontecer? Cria um suspense , uma curiosidade, uma perplexidade ! Adriana usa o trágico com mestria e cria dramas , unindo pontas e criando laços. E a sutileza dos nomes… Elton( Jonh) , Diadora( Diadorina?!!!!) Muito bom

    Responder
    1. Numa Ciro disse:
      4 de agosto de 2019 às 18:09

      Adorei o texto. Delicioso.

      Responder
      1. Adriana Nolasco disse:
        10 de agosto de 2019 às 16:48

        Numa, q honra e alegria encontrar esse comentário seu. Muito obrigada!

        Responder
    2. Adriana Nolasco disse:
      5 de agosto de 2019 às 15:41

      Obrigada, Graça. Tb amei vc ter amado. beijos

      Responder
    3. Adriana Nolasco disse:
      5 de agosto de 2019 às 15:45

      Seu retorno é como vc, Suzana, maravilhoso, poético, intenso. Me deixou muito feliz. Obrigada por tudo, pela força, pelo incentivo e pela origem dessa vontade de escrever. Love u.

      Responder
  3. Marcelo Gattass disse:
    3 de agosto de 2019 às 12:29

    Realismo fantástico e poesia na veia! O conto começa, submerge e aparece e no fim fica a narrativa doce de um encontro. Muito bom. Parabéns!

    Responder
    1. Adriana Nolasco disse:
      5 de agosto de 2019 às 15:46

      Que mensagem doce, Marcelo. Obrigada pela força e pelo carinho. Um grande beijo.

      Responder
  4. Vera Credpo disse:
    3 de agosto de 2019 às 13:32

    Como é gostoso ler os textos, carregados de originalidade, da Adriana! Herdou uma veia poética de sua mãe, mas deixa a sua marca indelével…

    Responder
    1. Adriana Nolasco disse:
      5 de agosto de 2019 às 15:47

      Oi, Vera, como é gostoso receber uma mensagem dessa. Repleta de carinho e estímulo. Muito obrigada. Beijo grande.

      Responder
  5. Maria Marta Diniz Santos disse:
    3 de agosto de 2019 às 18:28

    Lindo texto, rico em sentimentos que permeiam a alma, original e empolgante, antagônico, que viaja do menos ao mais infinto de forma surpreendente.

    Responder
    1. Adriana Nolasco disse:
      5 de agosto de 2019 às 15:49

      Martinha, que delícia ouvir suas palavras. Elas tb estão cheias de poesia e amor. Obrigada pela força e encorajamento. Muitos beijos.

      Responder
  6. Solange Schmidt Polastri disse:
    4 de agosto de 2019 às 09:10

    Parabéns Adriana! Você de um simples fato e encontro do dia a dia ,nos brinda com uma deliciosa leitura . Crônica basrante humana ,repleta de poesia e imaginação.

    Responder
    1. Adriana Nolasco disse:
      5 de agosto de 2019 às 15:50

      Tia Sol, suas palavras são como vc: iluminadas. Obrigada pela força que me dá. Um beijo bem gostoso.

      Responder

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