Do que eu esperava encontrar…

Texto de Toinho Castro


Teve aquela hora ontem, no show OK OK OK, do Gilberto Gil, em que todo mundo saiu do palco e ficou só ele, aquele senhor lindo de 77 anos, cabeça branca, com seu violão. E o que ele cantou ali, sozinho… sozinho não, corrijo-me agora mesmo, mas carregado da tradição da música brasileira, dos quintais, das mangueiras, da gente da calçada, da conversa fiada dos vizinhos, das badaladas das seis horas, hora do Angelus, da troca da guarda. Estava ali com seus pais, seus avós, seus outros tantos que atravessaram o oceano e ainda antes, sob sabe-se lá que baobá que ainda hoje deve viver em algum lugar. Ali, no palco, sozinho como não estava, cantou, ou entoou, Se eu quiser falar com Deus.

Quando a gente assiste a um espetáculo como esse, e vai escrever sobre isso, a gente quer falar dos detalhes, né? Do som, do setlist, das participações, dos destaques… quero não. Estava eu ali com seu Gilberto, com sua história, sem cordas pra segurar.

Ele ali, cantando essa canção lançada no distante ano da graça de 1981, era como um elo, um halo no meio do palco, esse lugar em que se sente tão bem. Vejo artistas que chamam pessoas da plateia para o palco, essa gentileza de nos permitir o lugar do sagrado. Seu Gilberto não chamou a plateia para o palco ontem. Ao som e sabor de Quem quiser falar com Deus fomos carregados, embalados, e o palco estendeu-se, como um lençol que se estende sobre as pedras junto ao rio para quarar. Quero só falar disso. Desse sol em nosso lençol.

Um espetáculo assim, um encontro desse tamanho, é sempre um momento de alegria. E como tal, um momento de aprendizado. A música é aula do que somos e aprender é lembrar do que sabemos. Seu Gilberto é que nem aqueles totens no nicho da sala, talhado na madeira, a nos atiçar a memória. A dizer: Recorda, pessoa! E aí você lembra. E aí você canta baixinho com ele, feitio de oração, os versos da canção, da poesia, do vão entre as gerações e do mar que vai subindo e preenchendo o vão. Bem sei que tô falando demais e talvez falando bobagem. Mas aprendi mesmo com esse mestre da nossa música que falar é bom, que falar besteira é bom, é necessário pra falar de nós. É bom ser caudaloso e perder um pouco o rumo e controle das palavras, para que elas falem para além do que nós falamos.

Pois perdoe que eu seja eloquente sobre uma canção tão contida, tão delicada. É que saí dali com vontade de falar, de cantar, de recuperar tudo isso que a gente vai perdendo no cotidiano de ruídos e conflitos e aperreios que o mundo nos joga aos nossos pés pra que a gente atravesse.

Se eu quiser falar com Deus
Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar, vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar

Termino esse texto com um agradecimento, não ao artista somente, mas a tudo que ele concentra, encarna, desmancha, desfaz no ar para nós. Criatura, entidade, inscrição, sentado com seu violão terno sobre o palco, foco da luz branca que atravessa o escuro, dos olhares, de todos aqueles ouvidos, de todos aqueles corações abertos ao seu canto.

Saí dali e pensei: Há quanto tempo, meu Deus, essa voz me acompanha!