O poeta em quarentena

Todos de quarentena mas o poeta nos visita. Ou será o poema? O poeta então traveste-se em poema para driblar a reclusão, o isolamento, para visitar-nos e falar do vão profundo que se deu no mundo. É a janela que ficou aberta que deixou o poeta, ou a poesia?, entrar. Bem-vindo hoje, Nonato Gurgel.

Poemas de Nonato Gurgel


 — Para Francisco Soares, meu pai.

LIÇÕES DE QUARENTENA

‘Exilo-me, logo existo.’

a quarentena muda
hábitos & gestos e gera
um imaginário asséptico
de gel tupi no café da manhã

lavo
leio
ligo celular
luto via word email zap

na feira orgânica quase vazia
da General Glicério, as plantas
os vegetais, raros, pareciam tristes
nenhum veio comigo

na padaria meio deserta asseptgel
corpos distanciados na fila do caixa
como o brasileiro jamais portou-se
será que vamos aprender a só ser?


JANELA SIM RUA NÃO

A gente se fortalece quando está só,
e a melhor relação com os outros é:
o mais distante.
Bertolt Brecht,

dessa janela noturna
ouço silêncios que vem
das ruas de almas aflitas
pós panelaço na República das Laranjeiras

nem sempre olhar a cidade acalma, Waly
mas objetos luminosos dizem i’ts all right
e bichos em quarentena indagam
se não foi assim que eu sempre vivi


VÍRUS DE ALMA FECHOSA

fecha bar fecha escola
fecha teatro porto praia academia
param as gravações da novela das 9
fecham até cidades como Arraial do Cabo onde ninguém entra
fronteiras de países fecham
só não fecham os 3 templos do capitalismo:
o banco o shopping a igreja