A poesia de Anamélia Mello

Conheci Anamélia nos primeiros dias de Universidade, lá no Recife. Era 1987 e éramos da mesma turma de Comunicação, no Centro de Artes e Comunicação da UFPE. Lembro que certa tarde, quando cruzamos nossos caminhos no hall de entrada do CAC e vi que ela trazia na blusa um botton com um verso de Caetano Veloso: Que a acrítica não toque na poesia, daquela música sensacional e muito pouco comentada, Ele me deu um beijo na boca.

Esse verso nos aproximou. A poesia nos aproximou e compartilhamos aqueles dias de universidade, dias dourados, levados por um aguçado senso poético da vida.

Naqueles tempos já experimentávamos versos e rimas, e é uma alegria ver que Anamélia se consolidou como poeta, desenvolveu um trabalho que hoje compartilhamos com você que generosamente nos segue e nos lê.

Agora vamos a uma pequena amostra, cinco poemas, do talento de Anamélia Mello, que ainda traz a poesia na blusa, na pele, no coração. —Toinho Castro, editor da Kuruma’tá


Poesias de Anamélia Mello

O ARBÍTRIO DAS ÁGUAS

Acordo.
A boca enorme da água
aplaca tudo.
Logo nada restará
de nossos sonhos parcos.
Lavados os carros
o caos se agiganta.
As pessoas recolhem tudo que podem
mas não sabem o que fazer consigo mesmas.

Levanto.
A morte jaz sobre as pedras das casas
em frente ao lixo que bóia
junto com os escombros de um dia
passado em alerta máximo.
Dor extrema
que tudo leva em seu regaço:
móvel, folha, criança e o descompasso
do horizonte branco
monocromático.
Não há tempo fútil possível.
Todos os assuntos são graves.

Acordo… levanto…
Mas quisera jamais ter abandonado
o estado de sonho…


CANSAÇO

Dia de trabalho árduo, muitos cálculos
Sobre a divisão do tempo, a organização do horário
O oposto dos anos sedentários
Em que são longas as horas
Dedicadas ao ócio ou jogadas fora

Dia de duros esforços, muito fôlego
Para continuar de arrojo em arrojo
Em que é impossível parar
Inútil fugir da raia
Em que o sensato é andar
Pra frente e esquecer a mágoa

Dia de suor luzente na fronte
E dor aguda nos músculos
Dia de ruga na testa em busca de Deus
O oposto do dia de festa
O oposto do dia do adeus
Há que se traçar metas, seguir cronograma
Há que calçar os sapatos e esquecer a cama

Há que esquecer o prazer, o jogo e o flerte
Urge checar o cheque e o balancete!
Ousar cair na gandaia, entornar o copo?
Não hoje, agora não dá, é inviável
Favor esquecer o provável
Faça-o inadiável!

Dia de árduo decoro, duros esquemas
Sobretudo dia de bater as pernas
Enfrentar o ônibus e as filas
Apressar o passo rumo ao objetivo
Calcular o lucro, descontar os ganhos
Apertar o cinto, esquecer os sonhos…


DUO DE SOMBRAS

A claridade oprimia a alma com um riacho de gotas de suor
a realidade era miragem, que o trôpego andar percorria
nada respirava, mas a luta pelo ar
era o sinal de que seria encontrado
o ouro das manhãs e tardes

O abraço era sôfrego, seus raios apertavam a Terra
tudo em brasa secava como se a morte fosse o clima seco
o vento de abanos queimava a pele
ouviam-se cantos de pássaros, mas os olhos mal enxergavam
poderia ser qualquer coisa aquela imagem ilusória

O que é duro quebra, e o gelo não se derrete
forma crostas e reluz mais que o mundo
reflete tudo a neve, até o sol, reflete estrelas
é ameaçada por nuvens, quem quer ser água vive
vaza e congela por inteira sem dar trégua
insensível brisa gélida

Água em neve fôfa toma a forma dos bancos, das escadas, das curvas dos carros
pesa nos galhos o gelo, enfeita os rios
amarela ao pôr-do-sol, escurece no ônix da noite
faz brilhar toda superfície
desperta nossa atenção, aguça, vivifica
envolve, mas impele adiante
em seu congelante desafio

E vida brota no inverno, no verão, dentro e fora de mim, na coleção infinita da eternidade…


SEM DÚVIDAS NEM CERTEZAS

Eu te vi luzir a chama em bares de esquinas
afogando o sábado em espumas branco-nuvem e douradas.
Eu te vi espargido na grama em frente ao edifício
buscando estrelas na abóbada celeste.

Ouvi teu canto marinho e o som do teu violino
incendiando horas gélidas na passagem do tempo.
Senti o pulsar do músculo íngreme do teu peito
que batizava as emoções em hierarquias.

De ti nunca previ um só movimento de vida,
a vida que em ti inflava velas para a grande travessia
em redemoinhos, pensamentos, sentimentos e crenças
sempre questionadores e prontos para o aprendizado.

Quando eras tomado pela Musa, veio de amor que te pulsava dentro
compunhas elegias as mais atrevidas e decantavas a sorte e o tormento
Quando ias embora, a ponte se erguia para nadares outras correntezas
e eu me descobria nem fora nem dentro, num agora sem tempo
sem dúvidas e sem certezas.


É NOITE

É de noite que brilha
a estação de nenúfares
o gelo dos teus olhos
a me ver passar
o escuro de chumbo 
e de pólvora.

É de noite que colo 
meu olhar ao teu olhar
e inauguro a mútua
transparência de almas.

É de noite que venho cobrar
a força das pelejas do dia
a acidez do teu coração
nossa rudeza característica.

É noite quando
nossos corpos se enlaçam
e bailamos em picos sagrados
sem nada distinguir ao nosso redor.

É a estação das pedras cortantes
o vício das madressilvas
os campos bordados de luz
mais branda que o tempo
o gesto simbiótico
a simbologia da cópula.

É noite quando me deito
em cima de séculos sombrios
apago a lamparina da razão
e me entrego ao delírio.

São feixes de momentos aprazíveis
em que me pego absorto
no ritmo alucinado do teu gôzo
no pouso firme que te doei.

É noite quando sigo fielmente
meu destino escolhido
deixando para trás, cativo
meu músculo esquerdo
abraçando teu espírito
feito a luz de um espelho.


Anamélia Cabral de Vasconcellos de Azevedo Mello, psicóloga pós-graduada do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Pernambuco desde 2014. Atende como psicóloga clínica, terapeuta ayurvédica e terapeuta floral em consultório próprio e na modalidade online. É membro da Academia de Artes, Ciências e Letras do Brasil e da União Brasileira de Escritores Seção Pernambuco. Membro do grupo Teia Literária há 7 anos, com quem co-participou de 4 livros de poesia e contos: “Coletânea Pegadas da Escrita”, “Mulheres feitas de tempo” e “Nós dos eus” e “Ecos da Resistência. Participou também da coletânea “Carrero com 70”, em homenagem a Raimundo Carrero. Escreveu um livro de poesia em português e outro em inglês, ainda não publicados. Vem recitando seus poemas em locais culturais em Londres, Recife e em lives no Youtube. Atualmente, está gestando um novo livro de poemas e um de contos. Instagram: @anameliamello.