“Nunca esqueci de quem somos descentes” — Amar antes que amanheça, de Cristiane Sobral

Texto de Toinho Castro


É preciso ter curiosidade, é preciso querer mais e preencher lacunas. Nas livrarias, nos sebos, vá e procure por outros livros. Não por esse ou aquele outro do autor de sempre. A literatura é o reino das possibilidades. Por favor, leia abrindo portas, abrindo caminhos. Tenho nos últimos tempos me dedicado a isso, ao romper da rotina literária, do terreno familiar, para me embrenhar em matas de letras, riachos de palavras novas. Assim que dei com a literatura de Cristiane Sobral, que, vejam só, eu não conhecia. Uma autora com 11 livros publicados, num jogo de contos, poesia, teatro, ensaios. Uma mulher inquieta, pensante, com um texto desafiador. Uma mulher negra, que me aponta uma grandeza de tradições, ritos, narrativas e afetos, que eu preciso olhar. Preciso adentrar.

Aprender a ler outrem. Aprender é ler outrem.

Amar antes que amanheça (que título poderoso!) é o décimo primeiro livro de Cristiane Sobral. E aprender dela somente nesse livro, é uma denúncia da lacuna enorme que preciso preencher. Publicado pela bravíssima Editora Malê, o livro reúne 15 contos em que o amor é uma força motriz, e ao mesmo tempo uma leveza generosa. Um refúgio nesse mundo de tensões, atritos, violência. Amar antes que amanheça. Amar antes de tudo. Amar antes.

No conto que abre o livro (sem spoiler, por favor!), vamos sendo enredados numa história que se dá na rua, que vai desenhando um caminho e um desfecho, e que, de repente, se deslinda no real, num tapa de acorda! Quem és tu?! Demorei a entrar no segundo conto, porque aquele começo me chamava de volta. E voltei e li de novo, atento, sob uma perspectiva nova, didática, certeira. Que coisa bela ser tirado do lugar assim.

Aí sim fui para o segundo conto, e para o terceiro, numa jornada que não cessa e pede mais, mais dessa literatura que nos exige tirar o véu. O amor em toda parte para quem o procura e o inventa. São páginas de mitologias, história, geografias, revelações e, sobretudo, desse novelo/novela que é ser gente. A leitura de Amar antes que amanheça é tão fluida e natural, que quando você dá por si, o livro já tomou conta do seu imaginário, do seu pertencimento. Os povos negros que povoam suas páginas vem de tantas origens, tantos caminhos, para dar aqui, nesse labirinto de encontros e desencontros, a sua história. Leio para aprender. Leio para não esquecer.

Cristiane Sobral é uma contadora de histórias, e reúne ao seu redor as comunidades muitas, no tempo e no espaço, de que são feitas as vidas da gente. A história é essa pedra que cai na água e provoca essas ondas concêntricas, que vão se espalhando e impactando, transformando nossas vidas. É o papel de quem conta histórias. É sua força, iniciar esse ciclo de mãos dadas.

A literatura afro-brasileira é porta e janela abertas. E convite. Temos muito o que ler nessa senda. A obra de Cristiane Sobral tá me chamando, e a esse chamado eu atendo.


Em 2010, Cristiane Sobral publicou seu primeiro livro individual, Não vou mais lavar os pratos. Dele destaco o poema que dá nome ao livro, para compartilhar a energia poética de Cristiane e sua força afirmativa, de vida.

NÃO VOU MAIS LAVAR OS PRATOS

Não vou mais lavar os pratos
Nem vou limpar a poeira dos móveis
Sinto muito
Comecei a ler
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi
Não levo mais o lixo para a lixeira
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal
Sinto muito
Depois de ler percebi a estética dos pratos
a estética dos traços, a ética, a estática
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros
Mãos bem mais macias que antes
Sinto que posso começar a ser a todo instante
Sinto. Qualquer coisa
Não vou mais lavar. Nem levar
Seus tapetes para lavar a seco
Tenho os olhos rasos d’água
Sinto muito
Agora que comecei a ler quero entender
O porquê, por quê?
E o porquê
Existem coisas
Eu li, e li, e li
Eu até sorri
E deixei o feijão queimar…
Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto
Considere que os tempos agora são outros…
Ah, esqueci de dizer
Não vou mais
Resolvi ficar um tempo comigo
Resolvi ler sobre o que se passa conosco
Você nem me espere
Você nem me chame
Não vou
De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi
Você foi o que passou
Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto
Desalfabetizou
Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira
Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá e de lá para cá
Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis
Não tocarei no álcool
Depois de tantos anos alfabetizada
Aprendi a ler
Depois de tanto tempo juntos
Aprendi a separar

Meu tênis do seu sapato
Minha gaveta das suas gravatas
Meu perfume do seu cheiro
Minha tela da sua moldura
Sendo assim, não lavo mais nada
E olho a sujeira no fundo do copo

Sempre chega o momento
De sacudir, de investir, de traduzir
Não lavo mais pratos
Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo
Em letras tamanho 18, espaço duplo
Aboli

Não lavo mais os pratos
Quero travessas de prata
Cozinhas de luxo
E jóias de ouro
Legítimas

Está decretada a lei áurea


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