A poesia de Renata Ettinger


“Gosto de pensar este como um livro sobre transformações e processos. O próprio título já traz a mudança. A mesma vida é outra é um livro de percurso, desses que a gente vai e volta e, se não estamos mais no mesmo lugar, também estamos. É uma espiral. Os recomeços insistem, incluem a estrada já percorrida e incluem nossas transformações. Por isso, também é um livro sobre estar em movimento, sobre o tempo e sobre estar viva”
— Renata Ettinger

Presença baiana na Kuruma’tá! Hoje a gente destaca a poesia de Renata Ettinger, com seu livro A mesma vida é outra. Sempre essa alegria de descobrir essas joias no inbox da Kuruma’tá. O tempo é curto e a equipe pequena, mas aos poucos a gente vai dando saída a todo esse trabalho bonito que nos chega, sempre surpreendendo.

Li com imenso interesse a poesia de Renata Ettinger. Com encanto esbarrei em versos assim: eu, cheia d’água, / fui escrever… / molhei o papel. Que riqueza de imagem, que fala tanta coisa sobre o fazer poético, sobre o estar em si, ter essa ciência do que somos e do que nos fazemos do que somos.

Paro agora de falar e deixo vocês com o melhor dessa página, os versos de Renata Ettinger.

esse perigo

uma pilha de livros
caiu hoje sobre a mesa
fui empilhando os livros
poema por poema

quando a pilha
despenca
ela me lembra dos poemas
que não li
ela me lembra dos poemas
que não escrevi
secretamente empilhados
por dentro
esperando o exato momento
de despencarem todos
no papel
na voz
no que sou

poemas empilhados
esperam para me ser

eu sou
essa pilha de poemas
esse perigo de estar
sempre na beira
de me despencar
poema-inteira

 


lapso líquido

entre o que escrevo
e o que vivo
tem um lapso
de alguns segundos

pensamentos
se perdem em mim
enquanto escrevo
a palavra de antes

meu futuro se perde
do meu texto
cai na mesa
tal como leite derramado
e é incapturável

não cabe mais
na garrafa que sou

encharco um pano
com o leite de um porvir
e corro até a pia
para espremê-lo
e deixar o futuro
do pretérito
seguir seu fluxo
pelo ralo

um lapso líquido
que se desfaz
enquanto escrevo

 


seca

insisto
na poesia
que não quer
chegar

secou a fonte

secou o poço
ficou só o pó

o copo, antes
meio cheio,
agora
vazio inteiro,
sujo de mãos
de poeira

insisto
e minha palavra
é sertão

resisto
suplicante
por uma gota
que seja

e
não cai
uma lág-rima


 

terra-palavra

minha terra-palavra
sofre com a seca

sou toda
a aridez do verso
clamando por água

acolher a pausa
um sentir semente

e esperar o tempo
do verbo-chuva

 


poema enxuto

eu, cheia d’água,
fui escrever…
molhei o papel.

e poderia não funcionar
papel e água e caneta
mas parece que,
com a água,
as palavras fluem melhor…

agora,
estendo no varal
o papel encharcado
de palavras-lágrimas
e deixo secar
ao sol…

me comove saber que,
em algum momento,
o papel irá secar
e as palavras-lágrimas
ainda vão estar lá,
molhando os sentimentos…

e o poema, enxuto,
há de fazer sentido.

 


atemporal

sangro presente
a cada amanhã

eu não sei
me conjugar
futuro

conjugo
agoras

que é quando sei
o tempo que sou

 


desfuturos

a gente conjuga
o verbo amanhã
como se futuro
fosse

a gente esquece
que amanhã
o verbo é
hoje

 


exercícios para uma angústia que não cabe

1
o corpo
é um copo de angústias

copo que está
sempre até a boca

quanto de angústia
ainda me cabe
eu não sei

tempo

o corpo
é um copo cheio
de angústias

tempo

o corpo é um copo
já cheio de angústias
que não se sabe
quando irá
se irá
transbordar

a qualquer
tempo-angústia
o corpo-copo
irá quebrar

corpo-copo
em cacos
existindo
num mundo de angústias

tempo
não há

2
a angústia
e seu fôlego

as estruturas da casa
não se sustentam

experimentar derreter
dissolver-se nesse mar

o sal da angústia escorre
e não há lenço que contenha
essa água
e não há tempo para voltar
ao que já não é

uma angústia-pena pesa no ar

um tempo sem vento
me ensina o voo
no chão

3
quanto pesa
um quilo de angústia?

perguntei sabendo
o tamanho do fardo
que iria carregar

o preço
não perguntei

examinei meu copo
para achar em mim
onde coubesse

querendo meu corpo
expandir-se do que sou
me desfazer
dos meus descabimentos

trincada
ou em cacos
carrego esse quilo
que não sei
quanto pesa
ou se posso

o preço
não perguntei

 


desabapoema

quando pareço
desabar
corro

pro poema

e poeta
faço minha
cena, dou
trela

estremeço os verbos
pra ver o que cai

às vezes
desabo
no choro

outras
em mim

 


alinhavos

minha mãe
sempre olhou
o avesso das roupas
o cuidado com os acabamentos
sempre lhe disse muito
uma costura mais torta
um forro barulhento
todo o invisível que
poderia interferir
no caimento

às vezes cabia uma
pinça para realçar
as estruturas
mas ela sempre fazia
um alinhavo
antes de passar
qualquer costura

hoje
olhando
meus avessos
vejo o quanto tenho
cuidado dos acabamentos
reparo nas linhas
soltas
trabalho em cada costura
fazendo sempre
um alinhavo antes
de firmar as estruturas

minha mãe
me ensinou
a me costurar

 


fluxos

a mesma vida
testa seu fluxo
em mim
e vira do avesso
pra ver se estou
do meu lado
certo

a outra vida
me testa
pra ver se sou
a mesma
ou se sou outra
habitando
o mesmo corpo

a outra vida
é sempre a mesma

a mesma vida
é outra a cada dia

e sou sempre
a mesma e a outra
a testar
e atestar
as vidas

 


existindo apesar

a vida
existindo apesar
do tempo
do medo
de mim

existindo
sendo a mesma
sendo outra

apesar
de ser a mesma
de ser outra

a vida
existindo

existindo apesar
de não sabermos
a vida

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Baiana, nascida em Itabuna, Renata Ettinger é uma poeta e dizedora de versos que encontrou na palavra um lugar de ser. Publicitária e arteterapeuta, ela fala pelos poemas desde os 12 anos. “A mesma vida é outra” é o seu terceiro livro de poemas. Também publicou os livros “GRITO: silêncios ecoando em minha voz” (2020), “Oito Polegadas” (2018) – uma coletânea lançada com os poetas Mário Garcia Jr., Nalini Vasconcelos e Ricardo Guedeville – e “Um eu in verso” (2002), todos de forma independente. Leitora voraz de poesia contemporânea, durante o período de isolamento social, realizou o projeto “Quarentena com Poema (QCP)”, em que compartilhou um poema em áudio por dia com amigos e interessados em poesia. Foram 215 dias consecutivos de poesia para ouvir e sentir, com mais de 70 autores contemplados. Depois, Renata criou o podcast “Trago Poemas”, iniciativa que caminha para o segundo ano em formato semelhante ao QCP. Ambos podem ser conferidos nas principais plataformas de streaming (Spotify, Deezer, Google Podcasts, entre outras). Para mais informações, basta acessar o instagram @renataettinger.