Nem mais um piu | Texto de Marina Pereira Dantas

Texto de Marina Pereira Dantas


— Já disse várias vezes, eu não sei quem ela é. Juro! Deve morar pelo caminho e me ver passar todo santo dia quando vou e volto do trabalho. Eu sou um homem conhecido, único médico da cidade, você acha mesmo que eu não serei visto e as pessoas não irão saber quem eu sou? A questão é que eu não dou trela. É uma criança escrevendo carta de amor com essa letra tão desenhada. Você leu? É apenas uma menininha qualquer apaixonada…nada se compara a você, meu amor. Vou trabalhar para nosso bem e o bem dos nossos filhos. Quero ver eles dormindo tranquilamente assim, sob um teto, com comida, com um pai de família, como deve ser. Estamos é perdendo nossa noite de sono com essas suas besteiras. É essa sua desconfiança no seu marido que envenena tudo. Agora nem atender a menina eu posso. O que vou dizer à família dela quando vier ao consultório? Que a avó entre só na sala e ela fique de fora?

— Você num disse que não era uma menininha qualquer? Agora já atendeu ela e a avó?

— Claro que não, Maria! Lá vem você com suas implicâncias torrar a paciência uma hora dessas. Fica enchendo o saco com essas histórias de ciúme, até confuso eu fico com tanta falação. É só uma carta boba. Sou homem sério e se tiro brincadeira é porque deram ousadia. Você quer me ver humilhado por aí? Tenho uma reputação para zelar, sabia? O que vão dizer de mim? Hã? Que o doutor agora joga no outro time? Que não sirvo mais pra nada e não dou conta do recado? É isso? Ora! Oxe! Quem já se viu ficar questionando o marido? Eu deveria lhe ensinar a me respeitar. Você é muito boazinha, viu? Deveria me agradecer por ter lhe dado um futuro bom. Uma casa, um carro, tirado a raça boa de você com esses meninos. Tem tudo e ainda quer o que mais? Hã? Vá! Me diga, deixa de seu chororô e fale. Vem com história de conversa, mas agora fica muda? Não vire a cara para mim, estou falando com você, sua malcriada. Olhe assim nos meus olhos.

— Ora vamos! Deixe desse seu coitadismo! Coitado sou eu que trabalho o dia todo e quando chego em casa todo dengoso para receber amor, tenho que ouvir suas queixas. A janta ainda está por fazer, os meninos ainda não foram dormir e você tá brincando com esses moleques. Passa o dia fazendo o que, por acaso? Soube que andou de conversinha na casa de Antônio. O que tem lá? Hã? Me diga! Tá querendo enfeitar meu juízo, é? Hã? Fale! Fica passeando pela vizinhança pra quê? De coxixo por aqui e por ali, pra quê? Hã? Me diga! Pensa que eu sou burro de carga para tá dando luxo a uma sem futuro feito você a troco de nada? É da lei do casamento! Você ouviu o padre na missa? Tem que respeitar seu marido.

— …

— Eu sou muito mole e besta, viu? Fico fazendo tudo o que querem, veja o que recebo em troca? Nada! Sempre penso nessa família. Trabalho feito um condenado, recebendo todo tipo de gente para você e seus filhos terem tudo do bom e do melhor, e o que me adianta, hã? Recebo ingratidão e um par de chifres pra enfeitar a testa. Quer trocar de lugar comigo, quer? Quero ver se aguentaria uma esposa da sua qualidade. Tem muito que me agradecer! Quer voltar a morar naquela beira da estrada, quer? Vá morar naquele buraco de peba de onde tirei você. Quero ver ter tempo de chorar e ficar inventando essas histórias. Avalie se vai ter tempo de ficar de conversinha pela vizinhança.

— Eu só fui ter com Alvanir mais cedo, porque ela ia me ensinar uma receita de…

— De como pular a cerca? De como acabar com a fama do marido? Hã? Aquela lá é uma vagabunda de marca maior. Desquitada! Pense como vai dar bom pra mim você se enturmando com aquelazinha. Tá bom demais, viu? Vai ser bom, vai? Olha aí o que eu arrumo: ingratidão, chifre e descuido. Depois de tudo o que faz, ou melhor, do que não faz em casa e vadia na rua, acha que tem moral de me cobrar o que? Hã? Vamos! Me diga! Só fica com esse seu fungado…faz eu me sentir um marido ruim, um homem mal, quando na verdade não cumpre seus deveres. É muita moleza sua, viu? Eu devia era endireitar seus pensamentos. Colocar-lhe um punhado de juízo nessa sua cabeça. Num instante você se orienta. Fique aí calada, fique, porque assim você é uma poeta. Hã! Vai dizer nada não? É isso mesmo?

— Eu só tava conversando, não fiz nada de mais, só levei os meninos para brincarem e tava todo mundo conversando, quando Antônio apareceu.

— Ah! É muito bom, tá vendo? Eu trabalhando e você de conversinha…Pois tome o que merece… Tome mais outra pra deixar de suas queixas…olha aí, tá vendo, sua desastrada! Fica quebrando as coisas em casa e acha que tem moral para exigir algo a mim…Essa cadeira custou uns R$600,00 reais, sabia? Acha que você vale isso tudo? Hã? Nem mais um piu, viu? Nem mais um piu.