Para o Amapá com amor

Texto de Toinho Castro


Fortaleza de São José do Macapá – Foto de Lorenzoclick

Eu ia começar esse texto dizendo que o Brasil é um longo fio de de histórias, de norte a sul, lesta a oeste. Mas o Brasil é mesmo um trançado de muitos fios, de muitas cores, texturas e destinos. Não é fácil, não é simples dar conta do Brasil em sua vastidão e diversidade de olhares, vozes e desejos.

Daqui do meu vértice, no Rio de Janeiro, para onde trouxe Pernambuco e Rio Grande do Norte comigo, e um pouco da vizinha Paraíba e um tantinho de uma Fortaleza que vivi na infância, daqui olho ao redor e tento vislumbrar essa palavra, a palavra Brasil. Palavra dita pela boca de tanta gente que anda nas ruas, debruça-se nos balcões de bares e padarias. Gente de toda parte, que vem pra ficar, que daqui parte pra outras paisagens e aragens. Como eu mesmo já saltei daqui a outras terras, como o Acre, o Pará, Rondônia, Minas gerais, Brasília… Saltos de ida e volta, que volto carregado dos sotaques e vertigens, de visões de gente em outros balcões, de outros bares e padarias.

Um jogo que gosto de jogar é acompanhar os dados geográficos da Kuruma’tá no Google Analytics. Saber onde estão ocorrendo os cliques, de onde essa gente anda visitando o que inventamos aqui. Tem esse poema do Mário de Andadre, chamado Descobrimento, que sempre me vem à lembrança quando investigo esses sortilégios algorítmicos:

Abancado à escrivaninha em São Paulo
Na minha casa da rua Lopes Chaves
De supetão senti um friúme por dentro.
Fiquei trêmulo, muito comovido
Com o livro palerma olhando pra mim.

Não vê que me lembrei que lá no Norte, meu Deus!
muito longe de mim
Na escuridão ativa da noite que caiu
Um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos,
Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,
Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu.

Brasileiro que nem eu, gente que nem eu. Mouse na mão ou riscando a luminosidade da tela de um celular, lá no Norte ou no Centro-Oeste, se enxerindo nos labirintos ternos da nossa revista. E nessas observações, em que é possível delimitar os períodos de análise descobri que, desde 4 de fevereiro de 2019, quando publicamos, eu e Aderaldo Luciano, o primeiro texto na Kuruma’tá, sobre Orlando Tejo e Zé Limeira, tivemos pelo menos um acesso em todos os estados brasileiro, com exceção do Amapá. Ninguém no Amapá deu um clique sequer na Kuruma’tá ou andou curiando nossas publicações.

Mas, naturalmente, mágoas não tenho. Eu tenho é fé e sigo aguardando o clique mítico que virá, eventualmente, do Amapá. Há de vir. Por outro lado sou obrigado a me confrontar com minhas, ou nossas, enquanto revista, limitações. Que voz aqui demos ao Amapá? Quando foi que, num dos 70 textos aqui publicados, vislumbramos os contornos do Amapá? Pois é, em nenhum. Tudo bem que coisa alguma escrevemos sobre Roraima, que nos visitou algumas vezes, mas ainda assim… Nada posso cobrar do Amapá. Como eu disse antes, não é fácil mesmo abarcar o Brasil. Mas com um pouco de vontade e pesquisa no mesmo Google que diz que o Amapá me ignora, eu apendo que o Amapá lá está, com sua cultura, seus rios, mitos e lendas, povos e florestas, desafios, conflitos, buscas e vidas.

Aprendi minimamente, por exemplo, sobre a tradição do Marabaixo, manifestação cultural do povo do Amapá que foi, em 2018, reconhecida como patrimônio cultural imaterial do Brasil. Com sua origem no distante Marrocos, um Marrocos distante no espaço e também no tempo, chegou ao Brasil no século XVIII, com a transferência da colônia portuguesa de Mazagan (atual El Jadida), para o Amapá, fundando a comunidade Nova Mazagão. No Marabaixo se encontram ritmo musical e dança, movida a tambores feitos com essa intenção, as caixas de marabaixo, o sabor da gengibirra, as mulheres com suas saias rodadas a rodopiar e a mútua troca de versos entoados na festa, os Ladrões de Marabaixo.


O Marabaixo é uma dança
De tradição centenária 
Trazida lá da mãe África
Por negros daquela área
E que nos conta uma história
Real e imaginária

(Versos do cordel Marabaixo – A cultura de um povo, de Joseli Dias)


Vou assim aprendendo e me encantando desse lugar que não visitei, mas do qual começo a sentir-me íntimo, talvez porque o cruze, na altura de Macapá, a capital, a linha imaginária do Equador. Talvez porque vislumbre, ao escutar a Canoa voadeira na voz de Patrícia Bastos, num olhar por sobre o Atlântico, prenhe do rio Amazonas, a epopeia de um povo a cruzá-lo, arrastando consigo seus cantos e danças, sua fé e memória dos que partiram mar-a-baixo… O fato é que basta olhar, escutar, compartilhar com o outro para que este lhe energize as antenas, vibre na sua sintonia e abra espaço para uma boa conversa. O fato é que o Amapá vai muito além do maravilhoso Marabaixo, passando pela culinária, literatura e oralidade e tantos outros matizes que nascem das pessoas e comunidades. Ah, vasto Amapá, assim dou eu meu clique em você, te chamo pra junto e escuto o troar das caixas de marabaixo, escuto tua gente, brasileira, que nem eu.







A foto da Fortaleza de São José do Macapá que ilustra esse texto não foi produzida com esse fim. Encontra-se sob licença Creative Commons Attribution-NonCommercial 2.0 Generic (CC BY-NC 2.0).
A Revista Kuruma’tá agradece a generosidade do fotógrafo por disponibilizar seu trabalho como Creative Commons.

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