Meu Seridó

Impactado pela peça Meu Seridó, em cartaz em palcos do Rio de Janeiro nesse fim de semana, restou ao poeta Nonato Gurgel escrever, para falar do maravilhamento da peça e do seu próprio Seridó. Confira ao final do texto datas, locais e horários das apresentações na cidade.

Texto de Nonato Gurgel


Para João Marcelino e Múcia Teixeira

Durante 7 anos, vivi nos Sertões do Seridó do Rio Grande do Norte. Lá, estudei Letras, trabalhei como técnico em agropecuária, em alguns municípios, e vivifiquei uma convivência afetiva com pessoas, bichos, rios e plantas que marcaram definitivamente o meu jeito de ler e ouvir o mundo. Banhado pelas águas dos rios Piranhas e Espinharas fui, com esse memorial hídrico de quem viveu o universo cultural seridoense, assistir à peça Meu Seridó.

Dramaturgia de Filipe Miguez e direção do César Ferrario, o drama abre com um silêncio que, de cara, ganhou os meus ouvidos e olhos. O silêncio do Sertão. Conheço os espaços solitários e silenciosos dos sertões potiguares, manjo a riqueza da sua oralidade. Num tempo trepidante como o nosso, nada melhor do que abrir um espetáculo olhando no olho, por segundos, a plateia atenta, nenhum ruído. Só o silêncio diz na introdução da peça, um drama repleto de narrativas memorialísticas e pegadas históricas recheadas de música, ironia e humor.

O espectador que conhece o Seridó se identifica, nas primeiras cenas, com a linguagem e os motivos usados pelo ótimo elenco, encabeçado pela atriz seridoense Titina Medeiros (mais de duas décadas de teatro e novelas como Cheias de Charme, tv Globo). O texto do Filipe é repleto de palavras certeiras como arenga, acauã, caatinga, chocalhos, juremas, ribeiras e curimatã, o peixe, além de rememorar as experiências da seca e do inverno, a rádio de Caicó, os bordados, e apresentar eventos típicos da região que ficou conhecida no mundo inteiro por causa do algodão Seridó.

Não lembro de ter escutado referências ao famoso algodão. Seria a planta um signo saturado? Seus valores simbólicos relidos em demasia pelas artes e culturas? Não sei. Referência universal, o algodão Seridó foi estetizado no belíssimo poema Não sei dançar, de Manuel Bandeira. Saí do teatro com a sensação de que o drama seria potencializado com o trecho final do poema, assim como poderia potencializar ainda mais a peça, a voz do Oswaldo Lamartine – o menino caçador que nasceu no Seridó, autor de Ferro de Ribeiras e A caça nos sertões do Seridó, dentre outros livros fundamentais para a cultura seridoense. Oswaldo fareja, feito bicho, feito homem, os rastros, as pegadas, os cheiros dos sertões do Seridó. Cheiros do mel, alfenins, queijos, cheiros da terra queimada, da pele queimada, cheiro do couro de vivente chamuscado. Os cheiros, a memória.

Os posseiros, as mulheres

É primorosa a direção de arte do premiado diretor e figurinista João Marcelino (Chuva de Bala, Viagem aos Campos de Alfenim, Hamlet), assim como o design de luz do Ronaldo Costa. Ele transforma o palco num Seridó irrigado de luz como é, ao vivo, a luminosidade no sertão seridoense. Não sou nenhum especialista em teatro, mas diria que a luz é quase um personagem de Meu Seridó, assim como são quase personagens as molduras que formatam o cenário. Molduras luzidias. Longe de limitar ou restringir, elas, as molduras, estáticas ou em movimento, acolhem os atores, sugerem as mutações do tempo, as transformações dos seres, dos mares, possibilitando uma pluralidade de formas.

E o que dizer dos figurinos coloridos e adaptados a diferentes contextos? Pautados no uso da saia, para todo elenco, os figurinos enchem os olhos. Emprestam certa graça e leveza, favorecem o deslocamento dos atores, acentuando as questões de gêneros que atravessam as narrativas contemporâneas. Com exceção do vaqueiro, nas demais personagens a vestimenta funciona. Ou seria esse vaqueiro de saia colorida, uma desconstrução da figura mítica, aquele vaqueiro rígido e marrom que habita o nosso imaginário romântico, desde José de Alencar e Martins Pena?

Seguindo a tendência do teatro contemporâneo, que dialoga com a música e outras artes, Meu Seridó apresenta exímia direção musical do Caio Padilha. Ele nos brinda com variados ritmos sertanejos, o baião, o xote, a ciranda e até um fado luso com alguma dicção seridoense. A sanfona é um espetáculo à parte, assim como a audição – breve, súbita – de um bem vindo ‘ele não’ e o seu potente efeito surpresa. Sintonizada, a plateia aplaude. Creio que mais um ‘ele não’, noutro momento, não faria mal nenhum, como diria a querida Ana Paula Oliveira, sempre linkada no momento pátrio que nos consome e atordoa.

O Seridó foi povoado no século XVII. Formado hoje por 24 cidades do RN e 6 cidades da PB, as identidades seridoenses habitam o nosso imaginário, seja através do canto folclórico do carioca Villa-Lobos (oh mana deixe eu ir / pro sertão de Caicó), ou através do canto pop do paraibano Chico César (ah, Caicó arcaico). Assim como esse cancioneiro que dá ritmo ao imaginário nacional, Meu Seridó cria tons e formas. Traduz um pouco desse Brasil que começa a narrar sua história, na voz dos que estavam mudos até o final do século XX, principalmente os posseiros de pouca ou nenhuma terra e as mulheres. Parodiando Ana C, eu diria que os sem terra e as mulheres são os primeiros que desistem de destruir a terra.