Bichos na travessia

Texto de Nonato Gurgel



Conheci a escrita de Ana Chiara no início do milênio. Seus livros Pedro Nava: um homem no limiar (2002) e Ensaios de possessão (2006), dentre outros textos em livros, revistas e jornais, sugeriam que aquela ensaística de ‘tom imaginário’ anunciava alguma ficção. Ana usava no ensaio procedimentos da ficção. Desde então, esperava este Poema da travessia (2019).

Enquanto esperava o livro, guardei num caderno de aulas de literatura o poema Madalena, publicado em jornal, no qual Ana relê a personagem trágica de Graciliano Ramos em São Bernardo. Começa assim o texto que estetiza a voz do culpado Paulo Honório:

Madalena, corujinha ensimesmada,

o ciúme monstro vadio
penetrou meus ossos, encharcou por dentro, virei calunga…
que estupidez, que porcaria
bichinho,
sol, chuva, noites de insônia, cálculos, combinações, violências…

Foi pensando nessa dicção oral de Madalena, que aguardei o livro lançado esta semana na UERJ. Poema da travessia é composto de 25 ‘cantos’, mais dois textos finais sem numeração. Tem ilustrações e posfácio do Artur de Vargas Giorgio, que ressalta na ‘performance’ da autora uma ‘arqueologia de si’, ‘uma espécie de escrita de si’. O volume abre com uma bela epígrafe do Baudrillard relacionando a viagem à ausência e ao corpo – dois temas que atravessam essa poética repleta de ‘mapa’ ‘passaporte’ ‘caderneta de viagem’ ‘trens noturnos’ e ‘aviso de trem’.

Travessia em si

Madalena não está no livro. Daquela dicção afetiva formatada em diminutivos (‘corujinha’, ‘bichinho’), quase nenhum eco. Poema da travessia é conciso, telegráfico. Suas linguagens verbais e não verbais remetem às formas breves, rasuras. Remetem à irreverência irônica, cortante, das poéticas modernas (Oswald de Andrade, Cacaso, Chico Alvim), e aos versos curtos, às vezes bruscos, como podemos ouvir no ‘canto’ XX dessa travessia de eco nietzschiano:

Terreno neutro
Desço aqui
Hoje

Estação sossego
Mapa aberto sobre os joelhos
Vejo estrangeiros na plataforma

Pensamentos em passos de pomba
Perturbam a espera
Sempre bom guardar um doce para depois

Como na autobiografia do Nietzsche, os bichos e sua fisiologia têm lugar nessa travessia. Os ‘pensamentos em passos de pomba’ rasuram a plenitude da lesma que, ao passar, deixava ‘um rastro prateado’. Além da pomba lê-se, nessa travessia, figurações do beija-flor, macaco, égua, cadela, galinha e lacraia, dentre outros. Nada daquela ‘corujinha’ que era a Madalena. Na travessia, lê-se uma lacraia deslocada. Lacraia pica, é predadora. Persegue insetos e animais pequenos.

Descobri que em cada segmento do corpo da lacraia existe um par de pernas, num total de pelo menos 15 pares. Daí tanto deslocamento, pensei, tanta perna pelo mundo, perna pela página. Para que tanta perna, meu deus, pergunta minha mente antiga viciada em anjos tortos, remate de males, citações sem aspas. Dessa matéria, a poeta compõe as ‘várias personas vampirizadas do texto alheio’, como lemos nos seus Ensaios de Possessão.

Desde os sertões do Guimarães Rosa e a música do Milton Nascimento, a palavra travessia transformou-se num signo poético-cultural que remete ao planeta Minas de onde vem Ana Chiara. Planeta barroco onde o exagero e a contradição moderna formatam o ‘gosto exagerado pelo real mais erradio’. Sua ‘travessia de través’ é feita pelas ‘veredas abertas’. Como na odisseia sertaneja do Riobaldo, essa é também uma ‘viagem no tempo’, tipo pé-na-estrada dizendo que ‘nada será como antes/… Precisa-se de algum amor’.

Citare, em latim, quer dizer por em movimento. E o que é a travessia senão uma ação que move, desloca? Desde o século passado, a gente aprendeu que o moderno é deslocado. Produzida ‘por deslocamentos mínimos’ (canto III), essa travessia poética inscreve modos de sobreviver, como no canto XII: ‘A lacraia sobrevive do intenso e lento deslocar-se’.


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