100 anos de Isaac Asimov

NOTA
Importante leitura a que tive acesso no dia de hoje, 14 de maio de 2020. Confrontando o homem Isaac Asimov com minha memória afetiva, de ainda muito jovem, 12 ou 13 anos, vasculhar seus livros e o mundo da ficção científica nas livrarias do Recife… Leitura recomendada e para antes da leitura do meu texto: What to Make of Isaac Asimov, Sci-Fi Giant and Dirty Old Man?

Texto de Toinho Castro


Eu adorava passear no aeroporto Guararapes, naquele velho Recife em que eu morava. Era talvez meu passeio predileto. Amava a praia também, meu outro passeio predileto. Ambos eram, ao seu modo, fronteiras. A partir da areia da praia, depois dos arrecifes, depois das ondas, estava o além. Lá longe passava um barco, um navio que deixa o porto para trás. Aquilo era uma espécie de emoção contida. Iam pra longe, pra longe dali. Para outros países, falar outras línguas. O aeroporto era a mesma coisa, fronteiriço. Os aviões aceleravam na pista e subiam, deixando pra trás esse menino, de olhos grudados na silhueta que se afastava e de ouvidos atentos ao ruído dos motores, sumindo no vento.

O aeroporto era um passeio da família. Lanchar no Café Palheta, observar os pirarucus no lago da praça em frente, um jardim projeto pelo gênio carinhoso de Burle Marx, No aeroporto vi Luiz Gonzaga, sentado na escada que espiralava ao amplo primeiro andar, onde havia um restaurante. Parecia um deus, cercado por seus asseclas. Minha mãe, ou meu pai, sussurrou “Aquele lá é Luiz Gonzaga”. Mas eu sabia. Nunca esquecerei essa imagem. Volta e meia, ela me vem à cabeça, assim, num dia nada a ver… tô assim de bobeira e lembro de Luiz Gonzaga sentado na escada do aeroporto. De alguma maneira essa imagem evoca meu pai.

No aeroporto, lanchando, como disse antes, no Café Palheta, demos com Péle, que me botou no braço e autografou uma foto da minha mãe com meu irmão, que ela deve guardar ainda. Lá também vi, de certa feita, Moura Cavalcanti, advogado e político da ARENA, que fora, ou era então, governador biônico de Pernambuco, nomeado por Geisel. Éramos de esquerda e aquela figura, representante da ditadura, não nos animava nem um pouco. Recordo dele aqui porque tempos depois li que ele estava no carro que se acidentou levando também seu amigo, o poeta Carlos Pena Filho, de quem muito admiro a poesia. O poeta veio a falecer por conta do acidente dias depois. Muito jovem, aos 31 anos. Eternizou a boemia recifense, não sem ironia, com os versos de Chope:


Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.

Por isso no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.

Quem eu conheci também no aeroporto dos Guararapes foi Isaac Asimov. Não, não… o célebre escritor de ficção científica não estava aguardando o voo de alguma conexão, perdido no Recife, contemplando os painéis de Lula Cardoso Ayres. Foi na loja da Sodiler que o encontrei.

Oainel de Lula Cardoso Ayres no aeroporto dos Guararapes

Havia essa editora, a Hemus, que publicou diversos títulos de Ficção Científica numa coleção apropriadamente chamada FC Hemus. Entre os diversos autores o mestre Asimov era, sem dúvida, um destaque. Cada livro dessa coleção ostentava o nome do autor em letras grandes, magenta, que eu reconhecia de longe. Sempre que eu ia no aeroporto passava na Sodiler para paquerar com os livros de Asimov. Os títulos eram como sereias me chamando… Fundação, Eu, robô, 827 Era galáctica. O que me amarrava ao mastro era ser muito pequeno para ter meu próprio dinheiro e esbanjá-lo com aqueles livros cujas histórias eu muitas vezes imaginava a partir das sinopses que eu lia nas contra-capas. Mas às vezes eu tinha o meu dinheirinho e numa dessas oportunidades eu comprei um dos livros que estava acessível à quantia que jazia no meu bolso: O grande sol de Mercúrio, de Isaac Asimov.

Escrevo o nome desse livro solenemente, porque me introduziu a um universo tão vasto e tão rico que até hoje me surpreende e encanta. Acompanhei de olhos brilhando as aventuras de Lucky Starr em Mercúrio, nosso pequeno vizinho às margens do Sol. Aquele livro era como se fosse, ao contrário do que se poderia imaginar, o pico de uma montanha sólida, ou melhor, o pico visível de um iceberg. Após esse livro empreendi minha descida às profundezas, guiado pelo coração enorme que Asimov havia se tornado em mim.

Asimov nasceu na aldeia de Petrovichi, na antiga União Soviética, e que hoje faz parte da Rússia. Hoje, 2 de janeiro de 2020, nesse ano que mal começou, ele completaria 100 anos se vivo estivesse. Visionário, dono de uma grande inteligência, produziu uma vasta literatura perene e jogou na nossa cara muito do que hoje nos desafia a compreensão, esse novo mundo, conectado pela internet, iluminado ou ameaçado pela inteligência artificial. Outro dia li que a sonda Voyager 2 havia cruzado a fronteira do Sistema Solar, adentrando o espaço entre as estrelas, como a sua irmã, a Voyager 1, havia feito em 2016. Todos lembraram de Carl Sagan. Eu lembrei de Asimov.



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