O sertão de Pombal, terra das terras

Texto de Aderaldo Luciano


A rua da Matriz – Foto de Aderaldo Luciano

A cidade de Pombal, no sertão paraibano, foi agraciada pela geografia, pela arquitetura, pela intervenção criativa do povo, pelo nascimento, nela, de Leandro Gomes de Barros, o pai do cordel brasileiro, o fundador do sistema literário cordelístico, marca nordestínica, emblema nacional.

Pombal é uma cidade plana, acorda na planície, nela se revela e vive e cria. Talvez por isso, e mesmo por isso, em sua tangente corre o Rio Piancó na busca do Piranhas, mais abaixo. O rio não corta, nem esquarteja a cidade, o rio como que a delimita, dá-lhe ordem de não avançar sobre si.

A BR 230, iniciada no litoral, nas pestanas cavilosas de Cabedelo, adentra a Paraíba, apartando-a em dois cordões: o azul e o encarnado. Em Pombal, essa BR, seu asfalto quentíssimo e escaldante, tenta ser um rio, mas seu fluxo é de mão dupla, seu caminho é ambidestro, não corre só para o mar, nem foi pensada para tal.

Pelo rio, embora assoreado e habitado pelas gigogas e outras plantas, assenta-se o verde em suas margens, banha-se a verde vida nos meninos imberbes nele mergulhando. O céu é profundamente azul, pelo dia, e profusamente estrelado, durante a noite. Nos intervalos do dia, na aurora, e da noite, no entardecer, o sangue do sol pintará seus desesperos.

O azul e o encarnado nos folguedos – Foto de Aderaldo Luciano

O azul e o encarnado são as cores do povo, lembrança e resquício remoto de Dom Sebastião, de Maurício de Nassau, do Rei Janduhí, dos Pegas e Panatis, dos galegos espadaúdos, dos negros assinalados, da lança e dos clavinotes sangrentos de Teodósio de Oliveira Ledo. São as cores intensas e fumegantes, desafiadoras e desafiadas, espadas matizadas, maracás de fundos decibéis.

A Igreja do Rosário, o rosário de Nossa Senhora, e essa senhora sendo do Rosário dos Pretos, desfralda sua presença inaugurando a Praça do Centenário, deixando aberto o maior pátio de igreja de toda a Paraíba, imagem de um tempo de longas vigílias e intensas manifestações. Da porta centenária dessa igreja, esculpida, a porta, em madeira fixe e inexpugnável, quem olha para o lado direito vê a antiga cadeia pública, hoje Casa da Cultura. E é essa casa que deveria reger aquele destino.

A antiga chaminé da Brasil Oiticica S/A, produtora de óleo vegetal extraída do fruto que deu nome à fábrica, sobreviveu, como muitas pelo país, à decadência e queda de suas bases de tijolo e cimento, de vigas e almas trabalhadoras. Venceu a especulação imobiliária, desafiou as máquinas Caterpillar e os tratores de esteira. É um portal para outra dimensão. Para a dimensão de um tempo fausto e astuto, açoitador de trabalhadores, bajulador de capitalistas.

A chaminé da Brasil Oiticica – Foto de Aderaldo Luciano

Mas eis que, debaixo de seu guarda-chuva, sob as penas de sua vida malfadada, pisando os tapetes encarnados e azuis, aos quais me referi anteriormente, desfilam, pactuados com o mesmo tempo, os Congos, trazendo um Rei que tudo pode, guizos que tudo tocam, canções que a tudo encantam, indumentárias que reciclam os costumes, coroas e paletós, saiotes e chapéus pontiagudos, passos e coreografia imutáveis, sorrisos e olhares desafiadores.

Logo a seguir percebe-se o Reisado, plantado, como os Congos, na carga da cor e da origem, rasgados coros africanos, espátulas e espadas guardiãs, mais coroas de ouro imaginário e pedras rutilantes catadas nas estrelas do Carreiro de São Tiago. Vê-se acolá, no centro de suas pupilas, o desbravar do povo que nunca apagou sua chaminé e, como aquela da fábrica, vencedora e guerreira, sustentáculo e cetro, trono e imensidão, sol pontiagudo e Vento Aracati.

Ó, Pontões pombalenses, vós que trouxestes a espontaneidade no canto e na dança, no corpo e espírito, no sopro de vida e na vida malsinada, escrevei com vossas lanças e cores um tempo precioso no qual o respeito pelas tradições e a formação de quadros sejam a fumaça intensa a anunciar que nos porões dos que em nada contribuem já se incineram sua falta de delicadeza com as coisas do povo.

E vem a procissão da Irmandade do Rosário desafiar os brancos senhores que em tudo mandavam. Ela chega com muita calma e esperança, cautela e arquitetura, louvar a Virgem de Nazaré, conquistando seu lugar à sombra, alcançando seu lugar devido, sequestrado pelos anos pesados, e ainda não devolvido. A Irmandade é a sentinela, está a postos na defesa da tradição, cantando e rezando e pegando nas armas se preciso for.

E nesse rosário de fé e resistência aproxima-se, nos mesmos tapetes, vestindo o branco da paz inexistente, a capoeira nada sutil em seus passos de luta, lúdica e telúrica, manhã de Zumbi, tarde da Escrava Anastácia, noite de João Cândido, madrugada de João do Vale, eternidade da resiliência. Os mestres postam-se ao lado de Besouro. Os neófitos já voam nos seus cangapés. Saudáveis instrumentos na santa cozinha em que fervem os refrões. Paraná, ê, Paraná, ê, Paraná!

E o Boi Iaiá assobe-se das cinzas, realiza-se, não como visão, mas como possibilidade. O boi é tão mágico, e tão visagem, e tão imaginário, e tão presente que os meninos o temem, que os antigos não querem domá-lo, e os que brincam o tangem como o boi mais brabo de todo sertão. É o Boi Misterioso cantado por Leandro Gomes de Barros, o Boi Surubim, o Boi Espácio, o Boi Soberano, o boi aruá. Tudo e todos transformam Pombal no polo cultural do sertão paraibano.


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