Temos hoje uma nova voz na Revista Kuruma’tá, que nos chegou pelos caminhos virtuais, pelas conexões randômicas que vão se formando e se consolidando. É sempre bom quando chega alguém novo por aqui, como uma chuva boa que cai, o frescor que vem pela janela aberta! Seja bem-vindo, Huggo!
Texto de Huggo Iora
Foi principalmente após o rompimento com Clarissa que Rômulo, retornando à casa da mãe — azul e de janelas amarelas, na esquina da rua dos Araçás, número 126 —, deprimiu-se de vez. Tentou cinema, puteiros, boates, comprimidos, tai-chi, trilhas no meio do mato, uísques, academias, livros de autoajuda, encontros em grupo. Nada serviu. Afinal, nem mesmo o psiquiatra encontrava alternativas ou mentiras.
Então, num entardecer calado, de raios solares despencando oblíquos do céu, uma pomba pousou na janela da cozinha enquanto Rômulo enchia um copo d’água. Ali, com aquele olhar puro do animal, os dois travaram um vínculo. O homem, num gesto instintivo, decidiu alimentar a pomba com farelos de pão que jaziam sobre a mesa. Estendeu sua mão côncava até o rosto da ave que suavemente beliscou os petiscos. Ela carregava um sinal púrpuro no meio da testa acinzentada. Rômulo riu, e sentiu uma alegria invadir algumas células do seu corpo. Fazia tempo que não sabia o que era isso.
Rômulo manteve seus principais compromissos. Dava banho na mãe cedo, todas as manhãs, e aulas de geografia ao ensino médio do colégio público Fernando Pinheiro Vespúcio. Entretanto, o restante dos seus dias era preenchido pela devota atenção às pombas. Alimentando-as diariamente, em menos de dois meses, mais de cem pombas vieram morar sobre o telhado da casa da mãe de Rômulo; tornando-se conhecida entre a vizinhança por: casa-poleiro.
Ele perdia horas admirando maravilhado o comportamento simples das aves, as relações que travavam entre si, a maneira como alongavam a musculatura do pescoço, a leveza sublime dos voos alegres. Particularmente, Rômulo se deliciava ao assistir às revoadas em bando que as pombas davam nos crepúsculos da manhã e tarde. Comparava o evento a um balé grandioso; emocionava-se quando comentava aos amigos remanescentes.
Remanescentes porque depois de transformar o jardim de sua mãe num pombal, grande parte do seu círculo de amigos, colegas, conhecidos, desfez-se. Falavam agora de Rômulo — e de seus novos hábitos, costumes exóticos — sob uma capa de julgamentos e análises. Suspeitavam de a loucura, causada sobretudo pelo impacto emocional do término de seu relacionamento com Clarissa, ter consumido a maior parte de sua inteligência. Ninguém mais curtia ficar perto dele. Possuíam asco sobretudo dos piolhos e das doenças contagiosas.
Certa vez, voltando cedo do trabalho – pois havia marcado uma consulta para sua mãe que vinha urinando um líquido espesso e marrom há semanas -, Rômulo viu Lauro, vizinho de longa data, espalhando bolinhas de veneno pelas calçadas, misturando-as com uma ração de pássaros. Foi na direção do pilantra, que tampouco tentou disfarçar o que estava fazendo. Os dois trocaram ofensas e depois quase caíram na porrada — não fosse Edna, a costureira manca e fofoqueira da rua, a escandalizar berrando por socorro.
Mesmo no enterro da mãe, Rômulo não conseguia tirar da cabeça os pensamentos das pombas que o esperavam. Recebia as condolências dos presentes com um aceno de cabeça automático, seguido de um fechar de olhos trêmulo e saturado. Sabia que não teria mais de dedicar boa parte de sua vida aos cuidados da mãe. E isso, sombriamente, alentava-o. Sobraria momentos bastantes para desfrutar da companhia dos pássaros e de suas purezas. Aguardou o anoitecer e, após a despedida de todos, retornou à casa; às pombas.
Quando Rômulo, ainda na semana de luto, descobriu que Sabrina, professora de história e única amiga de trabalho sua, fora demitida da escola por causas injustas — segundo seus princípios e morais —, o homem indignou-se severamente e numa atitude animal foi ao diretor pedir as contas. Não aguentava mais o comportamento humano; a hipocrisia das relações; as estruturas sociais; a manipulação do povo; a luta de classes; a concentração de poderes e direitos; os discursos imersos em ideologias. Exausto estava de tudo que enxergava ultimamente comum nos humanos. Desejava apenas enclausurar-se no calor da casa, do ninho, junto às aves e seus doces arrulhos, sonoros e úmidos como o despertar do sereno noturno.
Corridos três meses que Rômulo não saía do seu “habitat”, senão para fazer compras, começou a sentir dores agudas, pontadas que pareciam lhe perfurar a pele e os músculos das costas, logo abaixo das escápulas. Imaginou serem os rins. Atingiu quarenta graus de febre. Ardeu na cama. Molhou lençóis e edredons. Gemeu na solidão. Depois suspeitou ter contraído algum fungo das fezes das pombas, devido à semelhança dos sintomas. Afastou-se assim delas. Ainda que ateu, recorreu num desespero impotente a Deus, para que este o salvasse de tal quadro. Orou tudo que conseguiu lembrar da época de eucaristia. Chamou o nome da mãe. Inutilmente.
Na hora derradeira, quando a vista se anuviou de sombras, Rômulo viu uma pomba destrancar a janela do seu quarto e abri-la, permitindo que uma claridade morna invadisse a escuridão do cômodo. De postura imponente, o pássaro pousou no peitoril e encarou o homem — macambúzio e magro e totalmente entregue em seu leito. Arregalando os olhos num esforço tremendo, mirando o sinal roxo na testa da ave, Rômulo se ligou que era a mesma pomba do primeiro encontro naquele fascinante fim-de-tarde na cozinha, quando enchia seu copo com água e o pôr-do-sol dourava a poeira que caía da cortina. O homem esgarçou a boca num sorriso agradecido e demorado, sem desviar os olhos do ser alado, parado na janela.
De repente, por detrás da ave, uma manta se formou com a vinda das demais pombas. Elas mantiveram-se voando numa certa altura, conservando um bater de asas que gerava um som etéreo, terapêutico. As maçãs-do-rosto de Rômulo enrubesceram e suas sobrancelhas tomaram vida. Das costas, rompeu-se um empenado par de asas. O corpo minguou enquanto o peito inflou as fibras. Canelas deram lugar a patas. Leve, o indivíduo empertigou-se sobre a roupa de cama rapidamente, coçando suas penas com o bico. Balançou o pescoço. Não possuía mais os braços, nem compromissos, nem planos, nem preocupações ou questionamentos. Sentiu-se pleno, sem a sensação de desencaixe que o consumia quando homem.
A pomba do sinal púrpuro subitamente abandonou o peitoril, juntando-se às outras. Rômulo, sem perder tempo, atravessou o quadrado da janela com natural destreza e seguiu em direção ao bando. Sob os raios certeiros do sol, distantes montanhas desnudavam pétalas e sombreavam suas silhuetas finais, um pouco antes de adormecerem com a descida da noite, e as pombas executavam seu magnífico espetáculo no céu. Rômulo, integrando agora o balé, dançava e voava, como uma estrela inefável dos palcos.