Mais poesia chegando na Kuruma’tá, no inbox mágico da Kuruma’tá. Hoje é o professor e escritor Gabriel Cortilho que nos brinda com esses quatro poemas incríveis, que aqui estou a ler e reler
Ao mesmo tempo, há beleza nessas cidades
cinzas: corpos se encontram, buscam superar
os erros; apesar dos pesares, do Capital, das
classes, a desigual distribuição da riqueza,
espasmos de alegria e amor se aglutinam,
& fazem-nos esquecer a tragédia o mundo.
Seja bem-vindo, Gabriel, aos domínios poéticos da Kuruma’tá. Seja sempre muito bem-vindo às nossas portas abertas!
Fiquemos agora com o que interessa, a poesia de Gabriel Cortilho.
ANGÚSTIA
Passados os anos,
que transcorrem
ou assombram
aprende-se, por conta própria,
porque nascem as olheiras
nos olhos das meninas
porque uma pessoa começa
a conversar com psiquiatras
que petrificam suas emoções
tomará esta pílula, criatura do desvio;
alma sobrecarregada, eis tua olheira.
apreende-se o mundo
nomeiam-se as coisas
deixa-se a inquietação
diagnósticos cravados na pele
qual bois que fogem do pasto
Quando a morte
procura a vida,
recolho-me
nas ruínas da poesia
abraço Ana Cristina César
— a angústia é fala entupida
BENEDITA
Benedita colhia morangos silvestres
contava do filme de 1957, da árvore
genealógica ressuscitava os mortos,
a família, como se não fôssemos ser
um deles algum dia: causa perdida
também os netos as mães os cães
tornaram-se órfãos, com suas avós
mortas qual os morangos silvestres
perto da fúria terrena das formigas;
vivas – no sopro etéreo da memória
EXISTÊNCIA
Eu te digo o que a liberdade
significa para mim: não ter medo.
Nina Simone
Haveria outra oportunidade solar, Existência
de construir o sorriso nas ruínas da tristeza?
Não às mãos trêmulas do poema, mas todas,
às incontáveis mãos sem teto, sem um afeto.
Nem o Sol ou o espírito, mas o unir das mãos,
esquecer os nefelibatas, construir-se na ação.
Dias em que o Sol me faz renascer tranquila
ou fico entorpecido nas sombras do passado.
Horas, as lembranças, as pílulas, acumulam
marcham os homens-relógio rumo ao Nada.
Ao mesmo tempo, há beleza nessas cidades
cinzas: corpos se encontram, buscam superar
os erros; apesar dos pesares, do Capital, das
classes, a desigual distribuição da riqueza,
espasmos de alegria e amor se aglutinam,
& fazem-nos esquecer a tragédia o mundo.
À distância ou perto, partilham o sensível,
criam vários sentidos à ausência de sentido:
almas lascivas na pedra que flutua no espaço;
Talvez isso, ou somos bolhas, num tabuleiro
de forças econômicas, políticas & ocultas,
indiferentes à agonia de Gaia e dos homens.
ZEITGEIST
Foi o sopro do vento na janela
o passado a sombra o futuro
fecho os olhos um turbilhão
os insetos inundam a cabeça
que um dia foi uma semente
barulho lento mas tenebroso
entra aos poucos num corpo
poroso desfigura lembranças
imprime na memória falsas
aquarelas antigas sensações;
escuto: não há mais passado
o futuro? não há mais futuro:
apenas o instante construído
pouco a pouco & se não saio
de dentro de mim sucumbo
no fluxo do tempo: prenúncio
dos pássaros que sobrevoam
o relógio a hora da exumação
Gabriel Cortilho é professor e escritor, formado em História e mestre em Educação. Autor de doze livretos autorais de poesia, dentre eles A Transa dos Besouros Verdes (2016), Golondrina Subterrânea (2018) e Memórias no Cárcere do Ser (2022). Possui como referência as poesias de Wislawa Szymborska e Fernando Pessoa. E tudo o que contorce ou acalma o espírito.
maravilhosoooo!!!! parabéns!!!