Independência Poética: Lucas de Matos

Independência Poética é uma série de entrevistas realizadas por LORENA LACERDA

Poeta de hoje: Lucas de Matos

Comunicador e poeta soteropolitano, Lucas de Matos atua na área da poesia escrita e falada desde 2014 por meio da produção de saraus. Seu mais recente projeto, o Sarau Pôr do Sol & Poesia, já passou por Salvador, Boipeba, Praia do Forte, Maragogipinho e Aratuípe. Participou de Festas Literárias na Bahia e, virtualmente, em Colômbia e Moçambique. É autor de ‘Preto Ozado’, livro de poesias lançado pelo Selo Principis da Editora Ciranda Cultural (2022), e recitou nas três edições do premiado programa Conversa Preta da TV Bahia, Rede Globo. Produz vídeo-poesia e realiza atividades arte-educacionais em escolas e comunidades.

Lucas de Matos – Foto Grisel Sarich, 2022

O que te inspirou a começar a escrever?

Estímulo de professores nas atividades escolares. Lembro de uma professora no ensino médio que dizia que eu era seu escritor predileto, e isso me marcou muito na caminhada. Mas vim aflorar quando ingressei na Universidade do Estado da Bahia e conheci o movimento Sarau Arte Livre.

O que você faz quando percebe que está com bloqueio para novas poesias?

Não gosto de forçar e nem maldizer a palavra. Tento ao máximo trazê-la à vida e, quando percebo que não vai surgir nada, abro mão e procuro inspiração em artistas que admiro, na natureza e em situações cotidianas. E, como que feito mágica, a inspiração vem, mas no seu tempo escolhido ao invés do meu. Se não anoto logo, esqueço.

Seu maior sonho como escritor(a)?

Ser um best-seller, e ver que os meus escritos chegam a diferentes camadas sociais. Gostaria também de inspirar outras pessoas a escreverem, ou agirem de alguma forma, depois da leitura do meu livro. São sonhos múltiplos!

Assunto preferido de escrever?

Amor romântico. Apesar de não ser a tônica do meu livro de estreia. Contudo, com certeza, ainda lançarei livros sobre essa temática. Gosto de falar sobre esse amor com outros pontos de vista, tentando não pecar na pieguice.

Um elogio para sua própria escrita?

Múltipla.

Já publicou algum livro? Quais? Caso não, tem planos?

Sim. ‘Preto Ozado’, lançando na Bienal do Livro Bahia de 2022, pelo Selo Principis da Editora Ciranda Cultural.

Quais inspirações do cotidiano despertam sua escrita?

As manifestações culturais do meu povo, sobretudo o povo preto e baiano, a observação da passagem do tempo, casos que escuto que na rua, frases que surgem numa conversa. As lutas sociais também são fonte para minha escrita.

Qual dos seus poemas mais te define?

Preto Ozado. Tem gente que até me chama assim ao invés de me chamar pelo nome. E eu adoro!

Qual a parte mais fácil e mais difícil da escrita para você?

A mais fácil é quando a escrita já vem pronta. Por exemplo, num poema, quando o primeiro verso surge anunciando todos os outros. É quase como que psicografar, é mágico. O mais difícil é o anseio de dizer algo e não saber como dizer. Fica uma angústia até encontrar o caminho para desaguar.

Qual sua obra favorita de outro autor(a)?

Inúmeras. Mas vou destacar agora ‘Niketche’ de Paulina Chiziane, escritora moçambicana.

 


Um livro de Lucas de Matos

Nome da obra?

Preto Ozado.

Quando e em qual editora foi publicada?

Lançada em 12 de novembro de 2022, na Bienal do Livro Bahia, pelo Selo Principis da Editora Ciranda Cultural.

Existe um tema central nos seus poemas/poesias? Qual?

Nesse livro existem poesias de temas variados, tendo a negritude como fio condutor.

As poesias são divididas em fases nessa obra? Se sim, o que te motivou a fazer isso?

Sim. Há três partes chamadas ‘De Onde Vim’, ‘Onde Estou’ e ‘Para Onde Vou’. São como cicerones, norteamentos, sempre em referência à elementos que me precedem, seja a família, a natureza ou a luta dos ancestrais. Estruturas que me dão régua e compasso para perceber quem eu sou e qual o meu papel, e assim seguir adiante.

O que te incentivou a escrever esse livro?

Já tinha escrito muitas das poesias que o compõe. O convite da Editora me deu grande alegria para poder lapidá-lo e fazer essa estreia no mercado editorial.

É possível destacar uma poesia que mais se assemelha a seu cotidiano?

Muitas. Mas destaco ‘Felicidade Insistente’, que conta sobre a perseverança em continuar mesmo em face das agruras da vida. Uma pessoa preta viver de forma plena, digna e exuberante, é considerado uma ousadia, uma afronta. Querem enredar-nos na dor, no escaninho do racismo. Sermos felizes é destituir essa ideia. A vida tem várias faces, e precisamos usufruir da face alegre.

A sequência dos poemas conta alguma história?

Sim e não. Os poemas têm sentido pleno separadamente, e uma das experiências mais interessantes é ver os meus leitores abrirem em uma página aleatória e se identificar com o que está escrito. Mas juntos, narram um pensamento coeso pela valorização das raízes, a coletividade na jornada, e o enfretamento ao pensamento colonial.

Existe algum posicionamento político ou cultural na obra?

Sem dúvida. O título e a capa, da ilustradora Silvana de Menezes, já demarcam isso. Nós descontruímos a ideia de que o homem vitruviano de Da Vinci, considerado tendo proporções perfeitas e divinas, seja apenas o homem branco. Eu me coloco à frente dele para demarcar que o homem preto e a mulher preta também podem assumir o ideal de perfeição da humanidade. Na Bienal, uma leitora fez outra interpretação, que achei muito justa: a minha pose remete ao machado de Xangô. E há uma poesia sobre esse tema no livro. Axé!

Qual a relevância dos personagens implícitos/explícitos da obra?

Sou eu, meus parentes, amigos, ancestrais. A relevância são as mãos que pavimentaram o caminho para que eu pudesse/possa escrever e publicar. Sou fruto do legado de todas essas pessoas. Se sou quem eu sou, é porque elas também são parte da minha forma.

Qual a poesia mais marcante desse livro?

‘Continuação’. Fala da importância de continuar o sonho da criação da família preta, na utopia de uma sociedade onde o racismo tenha os seus dias contados. É uma poesia para os meus filhos que ainda virão!

 


Três poemas de Lucas de Matos

PRETO OZADO

Deve doer, né?
Querer me ver trancado no porão da história
enquanto eu continuo a ascender
Querer me ter capacho, na escória
Agora que eu tenho acesso à escola
e escolho enegrecer

Te irrita enxergar, mas estou lá
Tete-a-tete com seu filho na Universidade
e tem hora que até o ajudo a estudar
Vai ter que aceitar:
Você quase coroa sua tentativa de apagamento
Mas não contava com o aquilombamento
– Mandinga para viver, salvaguardar a memória

E hoje museus versam essa trajetória
de força que ressoa
Tapa os ouvidos, veda os olhos, se te atordoa
Deve doer, e se dói, deixo que doa

Não vai passar batido do meu close
e nem jogar quebranto no meu corre
Eu corro há séculos
e ainda continuo a driblar as curvas da morte
Não me venha dizer que o sangue derramado foi sorte

Cantei sobre o breu,
mas hoje quero cantar sobre o brilho
Quero subir de tal forma que os meus subam junto comigo
Te segura!
Eu vou atravessar o portal
Sou cria de Vilma Reis:
“Cabeça erguida, bico na diagonal”

E já que nesse país
pra não ser preso
tenho que andar identificado,
Toma aí meu RG: Preto Ozado
Diga meu nome e sobrenome,
e mesmo que doa, diga alto!

 FELICIDADE INSISTENTE

Mesmo que o mundo me apresente
a guerra
o sangue
a falta de comida
o desânimo
a desesperança
a fuga sedutora e convidativa
a prisão
a estatística
o elevador de serviço
o analfabetismo
o negacionismo
o precário ônibus nosso de cada dia
o medo de vida na cidade
a ansiedade
o sobressalto
o assalto e a carestia
a carência do afeto
o ataque à cultura
a preguiça do pensamento
a efemeridade de tudo
a obsolescência e o sedentarismo
o apagamento do passado e futuro
o ponto de vista unilateral
o desprezo (in)constitucional
a mesmice
a indulgência
a insistência em padronizar
o noticiário de catástrofe
a tragédia ambiental
a vontade de cair
a falta de ar

Eu me lembro de rir, de respirar
E me movo pro mundo continuar

CONTINUAÇÃO

Eu não termino aqui, em mim

Permaneço no sonho da família preta
que um dia terei
Nos filhos que educarei

Enquanto eles não chegam,
pavimento a estrada
com ações, letras e palavras
para que o sofrer seja ameno
e viceje uma existência corajosa
destemida, alada

Quero lágrimas de vitória e felicidade
em seus rostos de ébano
O contraste de dentes brancos
do riso expandido na cara preta
Puxando a mim, puxando à mãe

Quero contação de histórias
para dormir e para saber viver
Lembrando a importância de quem veio
para que eles saibam quem são

Quero ensinar o valor
do pão e da partilha
A necessidade da prática e da utopia
O caminhar resignado e orgulhoso
todo dia

Quero uma polícia pacífica e antirracista
que os proteja a violência
ao invés de enxergá-los alvos
por não terem a pele alva

Quero falar-lhes de potências
do corpo e da alma
Em nossa mesa farta
na fartura da cumplicidade
que deve existir numa família

Ah, meus filhos e filhas…
Espero e almejo-os,
penso em vocês por demais

Quero continuar
Quero a negritude do amanhã
Quer ser pai!