Sem desperdício

Crônica de Maria Cistina Martins


Redes – Arte original de Maria Cristina Martins

Difícil escrever uma crônica sem sair de casa há mais de um mês, sequer para ir ao mercado, lugar que deve estar ainda mais fértil para boas histórias. Penso em situações que vão de “Ensaio sobre a cegueira” a “Supermercado”, do Porta dos Fundos. Crônica é um gênero muito relacionado à rua, à observação dos seres humanos em seu cotidiano. Não dá para imaginar os grandes cronistas escrevendo com facilidade sem acesso a tipos e “causos” urbanos.

Sendo uma crônica jornalística, porém, basta estarmos conectados com o mundo externo por algum advento tecnológico. Não nos locomovemos em carros voadores, como pensávamos sobre o século XXI, mas o futuro nos trouxe a internet, potência de informação muito mais incrível do que supôs Isaac Asimov. Às vezes até mais do que gostaríamos ou deveríamos. Ontem, por exemplo, fiquei sabendo de carreatas contra a quarentena em alguns pontos da cidade. Pessoas que saíram em seus carros, muitos de luxo, exigindo o fim do isolamento social, usando caixões para debochar das milhares de mortes provocadas pelo novo coronavírus. Essa notícia eu não queria ter visto. Por outro lado, sem saber, como reagir a esse tipo de atitude? Mas conseguimos reagir?

Melhor do que qualquer debate contra os que debocham da morte é seguir Brecht e não desperdiçar “um só pensamento com o que não pode mudar”, e retirar “do poço seu irmão, com as cordas que existem em abundância”. Enquanto uns clamam pelo fim do isolamento em nome da economia, fazendo a economia se sobrepor à vida, estabelecendo uma falsa dicotomia, outros organizam redes de solidariedade para que não se precise escolher entre morrer de fome ou de covid-19. É inspirador ver a capacidade que têm os grupos mais vulneráveis de se organizar e autogerir, como aconteceu em Paraisópolis, em São Paulo, e em Acari, no Rio de Janeiro. Não digo isso em contrário à justa cobrança que deve ser feita ao Poder Público. Já que estamos sob o sistema capitalista, desigual e injusto, no qual elegemos representantes para nos governar, é inadmissível que, em um momento como este, não haja medidas de proteção aos que precisam.

Digo isso porque, mais do que nunca, se não for “nós por nós”, como se usa nas quebradas, a situação será mais trágica do que as previsões apontam. E se formos privilegiar o debate com uma parede de ignorância e mau caratismo impermeável a qualquer lógica e bom senso, e mesmo ao emotivo, adoeceremos também mentalmente. Na atual conjuntura, estar bem informado, principalmente quando se está há mais de trinta dias sem sair de casa, pode ser produtivo para escrever uma crônica jornalística, mas nem sempre para viver. Como vi em um meme: mantenha-se informado, mas não muito, senão dá vontade de morrer.

Pode dar vontade de matar também, pois pode ser necessário que “esmaguem o patife egoísta que lhes atrapalha os movimentos, quando retiram do poço seu irmão, com as cordas que existem em abundância”.