Recife: Invenção e Estação

Texto de Nonato Gurgel


Nordeste, século XXI. Recife literária. Uma cidade assinada pelo verbo, pelas lentes culturais de autores modernos e contemporâneos como Jomard Muniz de Britto, Pietro Wagner, Delmo Montenegro, Everardo Norões, Siba Veloso, Marcelino Freire, Frederico Barbosa, Deborah Brennad, Majela Colares e Marco Pólo, dentre outros.

I
o eco no bojo da macaíba’

O Nordeste configura-se, na Historiografia literária brasileira, como um dos espaços que mais produzem literatura. Principalmente poesia. Desde as estéticas da modernidade, no início do século XX, há uma conexão potente entre as poéticas modernas e os autores nordestinos, sejam eles Manuel Bandeira, João Cabral, Joaquim Cardoso, Hermilo Borba Filho, Ariano Suassuna, Sebastião Uchoa Leite (PE), Ferreira Gullar (MA), Mário Faustino (PI), Augusto dos Anjos (PB), Sosísgenes Costa (BA), Jorge Fernandes e Zila Mamede (RN) e Jorge de Lima (AL), além de muitos outros.

Essas poéticas são frequentemente resgatadas, como demonstram duas coletâneas: Invenção Recife, org. por Pietro Wagner e Delmo Montenegro, e Estação Recife, org. por Everardo Norões. Chama atenção, nesses poetas, as conversas com a tradição literária, e como esse diálogo parece escasso entre eles, poetas contemporâneos. Múltiplas formas e estéticas os inscrevem. Nessa inscrição, cada poeta, cada livro, cada poema parece sinalizar em si o esboço de uma poética particular.

Ou seja: tudo ilha. Esse isolamento é sugerido num poema de Pietro Wagner na coletânea Invenção Recife: ilha/ retém tuas águas/ para que se faça a cor do teu próximo dia. Do mesmo volume vem o aviso do escritor Jomard Muniz de Britto, acerca desse isolamento como mal poético: ‘…atenção, amantes do Parnaso: o auto-exílio pode ser a pior das doenças.’ Na apresentação, Fabrício Marques assinala a irreverência pernambucana, sinalizando sua vocação para a negação e o corte: Literatura navalha contra o papo raso da elite vesga.

Cartão posta com vista aérea da cidade do Recife

Para inventar esse Recife poético, foram selecionados dez autores, como o citado tropicalista Jomard Muniz. O poeta dos ‘arrecifes do desejo’ lança sua ‘bula’ para inscrever uma outra ‘doença de chagas tropicalistas’; na sua hommage a Murilo Mendes, ele constrói um “jogo de espelhos” que faz convergir, num mesmo verso, autores díspares como Shakeaspeare, Descartes e Leminski: adeus, hamlet. a deus, descartes. ao tudo, catatau.

A herança concretista da antologia é lida na “CAMISADEVÊNUS” de Marcelino Freire. Na sua hommage a Carlos Drummond, o leitor relê no celebrado verso ‘No meio do caminho tinha uma pedra’, a porção de sísifo na letra mineira. Destaca-se ainda Frederico Barbosa (Prêmio Jabuti de Poesia por Nada feito nada) e sua “Vocação do Recife” (Faca clara/ que ainda fala/ não), produtivo diálogo com Bandeira e sua “Evocação do Recife”.

Esse dialogismo com poetas pernambucanos pode ser aferido em vários textos do livro, principalmente em Siba Veloso. Mestre de maracatu, músico do grupo “Mestre Ambrósio”, ele é produtor de um dos versos que parece sintetizar o ritmo e o (des)compasso dessa Invenção Recife: Eu canto imitando os meus. A imitação desse canto resgata matrizes musicais da oralidade nordestina, põe o leitor de ouvido nos efeitos acústicos, significantes, como no verso …o eco/ no bojo da macaíba…

II
Quando a palavra muda a cor do dia

Estação Recife abre com o belo poema ‘Hoje’, de Deborah Brennad, autora de oito livros. Pertencente à geração de Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho, ela se destaca com uma poética enxuta, centrada na inscrição do tempo, como demonstram os seus títulos nesta antologia: Hoje, Dia é dia, Senhor tempo, Dezembro

Comparada com Invenção Recife, essa Estação…, apresenta autores com vasta produção literária e formação acadêmica. Alguns textos são caudalosos, como no belo poema ‘Alpendres e Currais’, de Majela Colares, na Litania que o jornalista e compositor Marco Pólo Guimarães dedica ao conterrâneo Osman Lins, ou no ‘Poema de despedida ao que parte’, de Maria de Lourdes Hortas.

Neste livro, os temas e as referências parecem mais centrados nos motivos regionais e autorais, sejam eles: Graciliano Ramos, Joaquim Cardozo, Jackson do Pandeiro, Olinda, Recife, o sertão nordestino, os silêncios rurais, as formas e os ferros dos engenhos, arrebóis e currais…. Através desses temas e motivos, a maioria desses autores parece celebrar a lição de Marco Pólo Guimarães: “Aprendi que só valem a pena as palavras/ que mudem a cor do dia”.


BIBLIOGRAFIA

MONTENEGRO, Delmo. e WAGNER, Pietro. (Org.). Invenção Recife. Coletânea Poética 2. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2004.

NORÕES, Everardo. et al. (Org.). Estação Recife। Coletânea Poética 2. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2004.


Texto de Nonato Gurgel
(Ilustração de Toinho Castro a partir de cartão postal sem data, mostrando o Marco Zero, no Recife, e imagem do poema Visão do último trem subindo ao céu, de Joaquim Cardozo, de 1970)