Um filme B

Texto de Tássia Veríssimo


Numa sexta-feira qualquer, Lara foi trabalhar como fazia todos os dias. Um dia normal em seu trabalho desprovido de qualquer glamour. Apenas mais uma burocrata fazendo o necessário para pagar as contas, enquanto sonha com uma mudança de carreira. Quem sabe um dia criava coragem de se mudar para Nova York e abrir um brechó virtual? Pensava enquanto preenchia mais uma planilha sobre custos de papel higiênico e produtos de limpeza para uma licitação com a qual não se importava.

Nesse dia, porém, a repartição estava mais agitada do que de costume e não era em razão de alguma uma nova fofoca sobre quem estava dormindo com quem ou sobre a perda de cargos e funções. O tema das conversas girava em torno de uma tal doença vinda de além-mar. Lara já tinha ouvido falar dela, mas até então estava em negação, afinal parecia tão distante. E os problemas concretos tão grandes e se acumulando como poeira no canto dos móveis.

Naquele final de semana desmarcou os compromissos e ficou em casa, fingindo que era apenas por vontade de descansar e não por medo. Na segunda-feira acordou e o mundo parecia igual. Mas logo percebeu que não. Apesar de não ter sido transformada em um inseto gigante ela também estava presa em alguma espécie de universo paralelo. De uma hora para outra sentiu que foi magicamente transportada para algum tipo de filme-catástrofe de baixo orçamento, sem que tenha se inscrito para fazer a figuração em tão lamentável obra.

Precisou de um tempo para entender que na falta de verba para a maquiagem dos zumbis comedores de cérebros, havia sido escalado para supervilão um ser microscópico, desses que por não poder ser visto a olho nu causa mais pânico do que qualquer monstro com uma serra elétrica e uma máscara duvidosa. Como vencer o que não se vê? Como lidar com uma ameaça que pode estar em qualquer lugar e m qualquer um? Todos viraram vítimas e suspeitos.

Como auxiliares do vilão – afinal com uma ameaça invisível é necessário que se incluam ajudantes de carne e osso para dar mais emoção à obra – descobriu que foram convidados homens engravatados que passaram a usar os meios de comunicação para negar ou minimizar a existência do perigo invisível. Assistindo a mais um lamentável pronunciamento na televisão, Lara concluiu que na verdade os engravatados sabem bem dos riscos e apenas não se importam A sua sanha por dinheiro faz com que eles deixem qualquer Lex Luthor no chinelo. O plano deles? Ela tinha certeza que era matar vovozinhas simpáticas que fazem crochê para não perder alguns trocados na bolsa de valores.

O visual dos heróis dessa nada rica produção? Um figurino composto de roupas brancas – atemporal e barato, faz o filme parecer cult até – máscaras descartáveis, luvas de látex e potes de álcool 70%, que atualmente valem mais do que barras de ouro que valem mais do dinheiro. Nesse momento, Lara pensou que a piada ruim só quem cresceu assistindo Silvio Santos na televisão de tubo da sala da avó iria entender e deu um sorriso ao lembrar das tardes de domingo no subúrbio.

Mas, voltemos ao filme.

Nessa grande aventura épica do cinema B o desafio de nossa heroína é fazer compras sem voltar contaminada. Descer as escadas do prédio – melhor evitar elevadores – merece a trilha sonora de Psicose tocando no celular. Comprar papel higiênico – o novo fetiche da classe média brasileira – se tornou uma odisseia que envolve o uso de vestimenta de guerra, distância de ummetroemeio de qualquer possível hospedeiro e rapidez. Isso tudo sem coçar os olhos, nariz ou boca. A volta à base requer uma rotina de banho, lavagem de roupas e desinfecção de produtos com detergente que deixaria qualquer germofóbico com tendências a orgasmos múltiplos.

Enquanto limpa o pacote de biscoito com o mesmo cuidado que se tem ao dar banho num bebê de seis meses, Lara, que é apenas uma pessoa qualquer que está presa nessa aventura com outros bilhões de não-atores, pensa no dia de hoje e de amanhã. Incertezas sobre o dinheiro das contas. Medo da morte. Saudades dos amigos. Total descrença na viabilidade da educação a distância no meio de uma pandemia. Ódio do patrão cobrando disponibilidade 24 horas. Vontade de jogar alguém pela janela. Vontade de se jogar da janela. Mas lembra que o hospital está lotado e não pode.

Larga o pacote de biscoitos, Lara abre a garrafa de cerveja – porque sem cachaça ninguém segura esse rojão – e senta no sofá com a pior culpa de todas. A culpa por não estar aprendendo japonês enquanto faz crossfit e cozinha pratos dignos de um restaurante com estrelas Michelin, tendo como pano de fundo a mais nova live de dupla sertaneja do momento.

Derrotada pelas próprias angústias, pega o celular, faz uma vídeo-chamada para a mãe, abraça o cachorro, chora. Os filmes de terror não costumam dar espaço para a elaboração dos sentimentos. Mas nessa obra há o tempo da elaboração. Muitos minutos dos espectadores assistindo o choro e chorando junto na Netflix porque cinema não pode mais. Uma catarse necessária. Estamos com medo. E tudo bem. Talvez Cannes se interesse.