A cheia de 1975

Texto de Toinho Castro


Em 1975 eu era menino, oito anos de idade. Foi o ano da grande enchente que inundou e assustou o Recife. A Cheia de 75. Na data de ontem, 17 de julho, esse evento cataclísmico faz aniversário de 44 anos. Recife sempre foi essa cidade amaldiçoada de águas, com suas palafitas, canais, o mar roendo seus ossos de cidade velha junto aos cais. Água salobra que brotava de qualquer buraco que se cavasse nas suas ruas sem calçamento, do mangue que jazia em toda parte. De dentro do próprio homem… como aprendi do Recife com João Cabral!

…(naquela água macia 
que amolece seus ossos 
como amoleceu as pedras). 
— João Cabral de Melo Neto, em O cão sem plumas.

A gente ouvia as notícias no rádio, sobretudo no rádio. Gente, era emocionante! Tinha uma frase que arrepiava os cabelos. Bastava escutar o locutor dizendo que já chovia muito na cabeceira do Capibaribe para se ficar tenso, observando a chuva cair lá fora e imaginando a cabeceira do rio inchando de chuva. Cabeceira para mim era da cama e a imagem da chuva caindo na cabeceira da minha cama é algo que ainda me é poético.

Naquele dia, há exatos 44 anos, o rio desistiu de suas margens e invadiu ruas, avenidas, casas e tudo mais que encontrava pelos caminhos. Consta que mais de dois terços da cidade sucumbiram à força da enchente. Muitos morreram e milhares ficaram desabrigados. O Recife ficou isolado e submerso. Na Imbiribeira, onde eu morava, apesar da chuva que insistia, o Capibaribe não chegou. Dizia-se que se a cheia chegasse na zona sul, é porque toda a cidade estaria acabada sob as águas. Ou melhor, sob a lama e os destroços, as carcaças de animais, móveis flutuantes, automóveis desprevenidos e sabe-se lá mais que mitologias.

O Capibaribe cortava moroso o Recife. Visto das pontes em sua lentidão, não se diria que ele seria capaz de tal destruição. Como um gênio preso numa garrafa, silencioso, irado, esperando a tampa ser aberta. Era como se morássemos perto de uma caverna em que dormisse um terrível dragão. Majestoso, porém. Eu amava o Capibaribe e morria de medo dele. E ele tinha esse compromisso de encontrar o mar que era irresistível e às vezes todas as águas o alimentavam na fome dessa direção. E o Recife ali no meio, atrapalhando, se espichando e se espalhando, como se não houvesse rio nem mar. Como se tudo ali fosse dele. E não era. Nem será.

Lembro desse dia de forma cristalina porque estávamos no cinema quando tudo começou. Mal se anunciou no rádio que a cidade se afogava, minha mãe ficou doida de preocupação. Eu, minha irmã e nossos primos havíamos ido ao centro, assistir no Cine Moderno uma sessão dupla de um filme de Mazzaropi e A noviça rebelde! Uma verdadeira aventura. E enquanto o milagre do cinema se dava na tela iluminada, entre risos e empolgação, o destino do Recife era selado. Ao fim da sessão saímos à rua despreocupados. Já era noite e diante de nós a praça Joaquim Nabuco iluminada e logo adiante o rio, cínico, como se nada estivesse acontecendo. O mesmo rio que ia devorando outros dois terços da cidade.

E pensar que, enquanto isso, gargalhávamos na sala escura do Moderno com Mazzaropi e viajávamos com Julie Andrews numa Áustria assombrada pelo nazismo em ascendência. Eu e meus primos, mais novos, não entendíamos ainda o significado daquilo e nos deleitávamos com os cenários e a música. O filme era de 1965 e tinha quase a minha idade, um ano mais velho. E creio que foi a única vez em que o assisti. Assisti-lo outra vez seria banalizar esse episódio, do filme que assisti no dia que estourou a cheia de 75. Já o filme de Mazzaropi, não recordo. Era um filme de Mazzaropi, isso bastava para nos divertir. Foi uma passeio incrível e havia no ar, para mim, uma criança, um sabor extra no ar. A tensão da enchente iminente, a volta para casa, de onde veríamos o recife desaparecer.

A gente cresce e compreende o quão triste são esses eventos, a dimensão das perdas, o luto. Mas naqueles dias eu vivi a euforia de algo enorme, maior que eu, que me atirava para longe do tédio da escola e de certa vida suburbana. Os helicópteros cruzando os céus, as notícias no rádio, a preocupação com meus outros tios e primos que moravam do outro lado da cidade, no lado invadido e saqueado pelo Capibaribe. E é curioso como coisas díspares podem se juntar numa encruzilhada da nossa história. A vida da família Von Trap enquanto a guerra arranha o horizonte e minha própria família contando as horas de uma enchente, num canto perdido da América do Sul. Eu, minha irmã e meus primos com os olhos brilhando porque havíamos visto dois filmes enquanto o meso rio que desfilava diante de nós em frente ao cinema destruía metodicamente a cidade. E Mazzaropi em meio a tudo isso.

Exatos 36 anos depois meu pai morreu. Um fio que se teceu entre um dia e outro sem que eu mesmo soubesse e percebesse. Somente hoje, nesses 44 anos anos, eu vislumbro essa simetria, uma equação entre filmes, a cidade, o rio e meu pai. Naquela noite chegamos em casa, tranquilizamos a todos, sem imaginar que anos depois, num mesmo 17 de julho, seria uma noite em que eu receberia numa rua do Recife a notícia breve da morte de seu Antonio. Ao contrário de uma enchente, era como uma vazante. Como se o rio Capibaribe recuasse do leito e eu pudesse caminhar por ele até aquela noite em que voltamos do cinema numa cidade por ele inundada. Aquela noite em que meus pais nos esperavam e ninguém da nossa casa, apesar da enchente que a tudo levava, ia morrer. Como os Von Trap, às margens da guerra, poderíamos cantar, se quiséssemos, tamanha era a nossa inocência.

Hoje, quando eventualmente passo pelo Capibaribe, olho bem nos olhos dele e penso: Eu sei do que você é capaz. E não me demoro sobre as pontes.

Será real essa história?

Aquele rio 
era como um cão sem plumas. 
Nada sabia da chuva azul, 
da fonte cor-de-rosa, 
da água do copo de água, 
da água de cântaro, 
dos peixes de água, 
da brisa na água.
— João Cabral de Melo Neto, em O cão sem plumas.