A água sempre procura por espaços secos

Texto de Eduardo Frota


Era uma criança incomum. Seus ossos eram moles, retráteis. Um a um, dobravam-se feito os de um contorcionista. Os pais, estavam certos disso, aquilo era uma enfermidade, doença. Faltava cálcio. No entanto, a verdade é que o dom do menino estava ligado à crença, dele mesmo, de que seu corpo era pura água. 

Desse jeito era mais fácil.

Chorava – e assim pensava que perdia líquido e se tornava um pouco mais duro, retesado. E corria para ler histórias engraçadas. E pedia aos pais que contassem piadas.

Suava – e assim pensava que a sede nada mais era do que o corpo avisando que seu lado de dentro secava. E corria para o banho deixando a água penetrar os poros.

Urinava – e assim lembrava que quando o líquido era amarelo, melhor mesmo era livrar-se dele na mesma hora. E corria ao banheiro para ver a descarga levar tudo aquilo embora.

Um dia

esgueirou-se com habilidade notável por cada canto do quarto, por cada flanco da casa, por cada esquina da vida, inclusive das que cruzavam com quem ele nem conhecia.

E neste dia

                percebeu o amor – e deixou uma lágrima descer os olhos.

                                correu para contar aos pais – a camisa ficou encharcada.

                                                fez xixi – antes de dormir, para recomeçar no dia seguinte.

                                                                Fluía a vida, fluía a água. E o menino, sorria.

 Latvian circus contortionist performer – circa 1930