Paisagens do interior + 2 poemas

Uma das coisas que sempre encantou em Numa Ciro é seu profundo potencial poético. Para-me ela, sempre, um poema a beira de explodir, emergir, se infiltrar na realidade, acabando por rompê-la. Numa tem humor, é esperta e cheia de ritmo. Impossível ler um poema seu, quem a conhece, sem imaginá-la cantando, soprando sua voz entre roda de amigos e incautos. Viva Numa Ciro!

Toinho Castro

Poemas de Numa Ciro


Teatro Cândido Mendes / Ipanema — Outubro/ Novembro/ Dezembro de 2013
Foto de Claudia Ferreira

Paisagens do interior

1.
Moça rindo na janela pastorando seu amor
Um grupo de analfabetos votando no seu doutor
Papagaios indiscretos imitando gravador

cruz na beira da estrada
sala-de-estar na calçada
faca-peixeira afiada
e santa em cima do andor

Isso tudo ainda se vê em paisagens do interior

2.
Tem folheto cordelista vendido em banca de feira
Matuto em lombo de burro com relógio na algibeira
Guinés cantando “Tô fraco” e gado comendo em cocheira

surdo chamado de mouco
as santinhas do pau-ôco
conchas de quenga de côco
e quengas que vendem amor

Isso tudo ainda se vê em paisagens do interior

3.
Uma cabra displicente atravessando a rodovia
um pavão misterioso namorando a cotovia
onça pintada das brabas bafejando a cantoria

pra qualquer dor, um cachete
pra viajar, marinete
pro escuro, frachilete
Lampião tem seguidor

Isso tudo ainda se vê em paisagens do interior

4.
O sol caindo na serra e a lua subindo pra ver
por um momento se olham: morrer parece nascer
quem viu os dois nesse instante, jamais consegue esquecer
E pra cantar o elogio
desse encontro de amor
criou-se o tal desafio:
contador-e-cantador

Isso tudo ainda se vê em paisagens do interior

5.
Mas existe a tal mudança que mexe em tudo e jamais
engana o tempo que passa e passa o tempo na paz
Pois não é que a tal mudança mexeu na moça! e o rapaz?

Agora andam de moto
não querem vender seu voto
da internete, devoto
o povo sabe o valor

Isso agora já se vê em paisagens do interior.


Os sete pecados em cantoria

A Gemedeira dos sete pecados na capital dos pecadores sem pecado

I
A preguiça

Eu gemia de preguiça
dia e noite, noite e dia.
Gemo ainda, em todo canto,
no quarto, na livraria.
Gemerei por toda vida,
ai ai ui ui,
a preguiça é minha guia.

O gemido é mais gostoso
se eu mastigar devagar.
Com preguiça bebo água,
me arrastando, tento andar.
Gemerei a terra inteira,
Ai ai ui ui,
a preguiça é o meu lugar

Gemo alto de preguiça,
gemendo me sobressalto.
Gemo baixo quando canso.
Diz mexer, escuto assalto!
Gemo de tudo e de nada,
ai ai, ui ui,
a preguiça é meu asfalto.

Só adormeço gemendo,
acordar é pesadelo.
Fazer sexo é cansativo.
Sonhar, nem de brinquedo!
Gemo sem fim, sem parar,
ai ai ui ui,
a preguiça é meu levedo.

Estou com fome, mamãe…
chamo gemendo mãinha.
Responde a mãe, carinhosa:
“Traga seu prato, filhinha!”
Não quero mais, já passou,
Ai ai ui ui,
me cansa ir até a cozinha.

II
A Gula

Eu mastigo sem parar.
Como sempre o tempo todo.
Meu apetite é voraz:
ganho do padre e do lobo.
Eu só penso em guloseima,
Ai ai ui ui,
a gula é meu farto consolo.

Já nasci chupando os dedos.
Mamei em mamãe e na ama;
nas visitas à vizinha
de resguardo em sua cama.
Mamei até nas cabrinhas!
ai ai, ui ui,
gulodice me deu fama.

Criança sedenta e faminta,
só brincava de casinha.
Era sempre a cozinheira
e até a boneca, tadinha!
vivia com sede e com fome,
Ai ai, ui ui ui,
me chamavam gulozinha.

Só compro em lojas que têm
utensílios de cozinha:
Copo, prato, guardanapo,
comida pronta, quentinha,
bebida de todo tipo,
Ai, ai, ui, ui,
não quero outra vidinha.

Quando vou ao shopping center,
não vejo roupa nem joia;
não compro nada pro quarto;
oh! doce de paranoia.
Eu salto sem pára-quedas,
Ai, ai ui, ui,
mas num nado sem a boia.

III
A Ira

Vivo da ira que eu tenho
de tudo que há nesse mundo.
Odeio mamãe e papai.
Dos Irmãos, ódio profundo.
A ira pulsa em cada nervo
ai ai ui ui,
do meu coração vagabundo .

Irado meu choro ao nascer.
Não conheço compaixão.
A flor do ódio cultivo,
levo um cacho em cada mão.
De raiva pretendo morrer,
Ai ai ui ui,
Flores do mal no caixão.

O ódio danado qu’eu tenho,
cresceu com as ervas daninhas,
nascidas no abandono;
de amores perdidos, filhinhas.
Os frutos maduros colhidos,
ai ai ui ui,
divido com as minhas vizinhas.

As sementes dessa ira
fecundo em latinhas de ódio.
Nas estufas do silêncio
cultivo-as como-se-fossem-d’ópio.
Odeio a bondade e a fé
ai ai ui ui,
eu fumo a ira no pódio.

Apago as estrelas da noite!
Quebro a varinha de condão.
A fada madrinha eu enforco,
Papai Noel pro lixão!
com saco e tudo que há dentro
Ai ai, ui ui,
só guardo a raiva do cão.

IV
A Inveja

Eu me mato de inveja,
de quem vive sem sofrer
e tem tudo e mais um pouco,
ganhando a vida ao nascer.
Herdei a inveja de tudo
Ai ai, ui ui,
que está fora do meu ter.

Invejo as pernas da misse,
e a cintura de pilão.
Quero os peitos de Tieta,
ser a musa da canção
e ouvir, por onde passar,
ai ai, ui ui,
“Eu derrubo esse avião”.

A inveja me consome,
quando não tenho o que eu quero.
Minha inveja tem os nomes
das coisas que mais venero.
Cobiço as mulheres alheias
ai ai, ui ui,
Inveja é meu par no bolero.

Quando entrei naquele quarto
eu vi com a inveja dos mortos
mamãe mimando outro filho
no meu cantinho em seu colo
papai olhando os seus braços
ai ai, ui ui,
furei meu pai bem nos olhos.

Saí de casa bem cedo,
pra ter inveja bem longe,
inveja das que cobiça
tudo e todos quando e onde
aparece o que desejo
Ai ai, ui ui,
Pela inveja eu virei monge.

V
A luxúria

Eu acordo e me apaixono
e passo o dia com vontade.
à tarde me pego querendo,
a noite inteira, é verdade!
Eu vivo nadando em prazer
ai ai, ui ui,
em luxuri-oh-cidade…

Em tudo que há nesse mundo,
que qualquer um diz: bom, bons,
existe um mal que eu não troco
nem vendo a imagem dos sons
o bem e o mal no meu bloco
ai ai ui ui,
gozam dos dons e nos tons.

Só de pensar me dá luxúria
nas pernas, no olhar e nas ideias
e o corpo brinca com a alma
de vadiar nas boleia
dos caminhão nas estrada
ai ai, ui ui,
pra ter gozo de plebeia.

E como gozarão as santas?
E a onça em pleno cio?
Psiu, não geme tão alto,
te vira na lata, amor mio!
cachorra que gosta de funk
ai ai, ui ui,
pega o trem no assobio.

Caço a noite atrás do dia,
o rabo é quente, é um açoite.
Quem trepa na cama dos outros
não teme lâmina, nem coice.
O cu dos outros não é o nosso,
Ai ai, ui ui,
luxúria nossa de cada noite…

VI
A Avareza

Eu quero tudo pra mim.
Não abro a mão para dar.
Só bebo a seiva da vida,
nem a morte vai tomar.
Eu tranco a vida no cofre
Ai ai ui ui
Avareza vai guardar.

Nem Moliére dormindo
no seu avaro colchão
sonharia com um personagem
sovina que nem meu vilão
que tem medo de perder
Ai ai ui ui
até a poeira do chão.

O meu nado sincronizado
no lago de ouro derretido
cunhou a moeda talismã
de tio Patinhas, no vestido.
Para fantasia avara
Ai ai ui ui
A riqueza é o tecido.

Mesquinho, mão-fechada,
mão-de-vaca, pão-duro e avarento,
são nomes para quem pega
carona nas costas do vento
Ai ai ui ui
E não dá nem um por cento

Uma avara como eu,
que tem vergonha de ser,
é uma vara envergada
nas avarenças do ter
ela só sente a avareza
ai ai ui ui
quando ela teima em são ser.

VII
A Soberba

Eu tenho orgulho de mim
e de tudo o que é meu.
Eu tenho mais é que ter
tudo que querem meus eus:
eles só pedem ao mundo
ai ai ui ui
o mundo todo e até Deus.

Ninguém merece o prazer
que a vida a mim me oferece.
A minha vida se farta
na delícia que se esquece
de tudo e de todos, nem desce!
ai ai ui ui
a vaidade me aquece

O orgulho e a presunção
são balinhas de festim,
se os comparo à arrogância,
projétil largado de mim.
A tirania é meu forte
ai ai ui ui
Eu prendo e mato tudim .

Eu sou melhor que você.
Ninguém consegue alcançar
o lugar onde eu cheguei,
de onde eu posso mandar.
Mando no reino e no rei
ai ai ui ui
Mando o bicho te pegar.

A soberba é minha força
A vaidade me anima
No orgulho eu me sustento
A prepotência me estima
da tirania eu extraio
Ai ai ui ui
As truculências da rima


Romeu e Julieta: como escaparam da tragédia

Um romance paraibano
(Este Romance faz parte do espetáculo A Peleja da voz com a Língua – O Amor)

Romeu

Julieta! Julieta! Pareces morta!!!
Não posso acreditar.
Jurei contigo morrer,
mas começo a duvidar…

… se vale a pena partir
sem a certeza de achar
do outro lado da vida
o que mais quero encontrar.

Morreste de amor por mim.
Algo me diz que não devo arriscar.
Sai pra lá punhal safado.
Cadê o frade pra nos salvar?

A madrugada já vem.
Ouço ao longe a cotovia.
Se eu morri, ressuscitei.
Quero ver a luz do dia.

Julieta

Não é a cotovia, é o rouxinol:
Canta para quem anoitece.
Na versão do bardo inglês,
anoitece mas não amanhece.

Romeu

Julieta, será que ouço a tua voz?
Estarei louco? sonhando, talvez!
Eu tento escapar da morte
e tu me salvas da viuvez!

Julieta

Romeu, Romeu, tu não morreste!
Não preciso, portanto, me matar.
Que alívio, fujamos do autor:
Ele planeja nos suicidar.

Romeu

Julieta! Como escapuliste?
Meu docinho de goiaba!
Pela nossa vida amorosa,
Shakespeare é quem se atrasa.

Julieta

Romeu meu queijinho meu!
Há mais perigo em teus olhos
que já viram os olhos meus.
Ai meus olhos! ainda não viram tanto.
Vai cegar-me a luz dos teus.

Romeu

Tu vês perigo em meus olhos?
Queres cegá-los? São teus.
Se o amor é cego, Julieta,
um cego sábio e feliz serei eu.

Julieta

Apressemos o passo:
Isso vai dar em tragédia.
Não quero morrer tão nova,
prefiro viver na comédia.

Romeu

O autor, com o atraso do frade,
quis imitar as desgraças mais cruéis,
tal a de Píramo e Tisbe.
Prefiro viver nos bordéis.

Julieta

Lets go to América!
Aquela! debaixo da linha do Equador,
onde não existe pecado
e tem gente de toda cor.

Romeu

Pampas, praias, caatingas e cascatas,
sambas, maracatus, bossa nova e emboladas;
as mais lindas matas virgens,
e lindas virgens… desmatadas!

Julieta

Vamos logo pro Brasil,
onde a mulher tem razão.
Dona Flor tem dois maridos
e Maria Bonita: as armas e Lampião.

Romeu

Mas primeiro vamos passar
pelo reino de Portugal:
Conhecer o Tejo em Lisboa
e a sua Indústria Naval.

Julieta

Caravelas, Romeuzinho!
Quero visitar em Alcobaça
os túmulos de Pedro e d’ Inez:
Não puderam escapar da desgraça.

Romeu

Pois…
Infelizes os dois sucumbiram
às leis da casa real.
Nossas casas que se danem,
nosso amor é que é real.

Julieta

Mais rápido, Romeu!
não quero meu nome naquela expressão:
“Agora é tarde, Inez é morta”.
Nem morta! quero tal coroação.

Romeu

Brasil, lá vamos nós!
Pra Roliude do nordeste.
Quem era besta de morrer?
Quem quiser que faça o teste.

Julieta

Saímos daquela cova,
nem Shakespeare nos viu.
Enganamos todo mundo.
Atrás de nós?! Nem psiu.