Maracatron

Hoje começamos a publicar aqui na Revista Kuruma’tá a série Maracatron, escrita por Toinho Castro e publicada pela primeira vez na querida Revista Zé Pereira, em 2001. A versão aqui disponibilizada é revista e levemente ampliada e você pode ler a versão original aqui.

Vamos ver até onde vai essa estranha aventura que mistura energias fora de controle, mundos paralelos e personagens sem rumo. Em breve novos episódios! Fique de olho!

Texto de Toinho Castro


Sabe a falta de energia elétrica que acomete a cidade nesse fim de noite? Bem, vamos abrir o jogo aqui, cá entre nós, leitor que não sei onde está e nem quem é, leitor randômico a quem essa mensagem deve ter chegado como um trote, uma surpresa estranha, talvez em meio a uma agradável conversa com um amigo no zap. A verdade sobre o que está acontecendo é… é que a cidade foi engolida por uma gigantesca bolha de plasma gerada acidentalmente durante uma experiência rotineira e, repare, fracassada. A lorota sobre a torre de distribuição que caiu é e somente isso, uma lorota. A torre foi meticulosamente derrubada, após a queda da energia, para servir de explicação ao que não pode nem deve ser explicado. Tem uma equipe secreta de plantão, criada especialmente para simular coisas que precisam ser simuladas a fim de que outras pareçam ser o que não são. Pouco sabemos sobre essa misteriosa equipe mas de alguma forma, que também desconhecemos, eles foram acionados e cumpriram a missão. Missão cumprida. Para todos os efeitos práticos e jornalísticos, a culpa é da torre que caiu por causa de um raio que caiu na torre que não caiu.

Uma de nossas câmeras escondidas registra a evolução do fenômeno

Essa tal bolha, naturalmente, não deveria existir; pelo menos não nessas proporções. Trata-se de um daqueles casos em que um vacilo se transforma num desastre porque um distraído se apoiou na alavanca na qual ninguém deveria se apoiar. O curioso é que outras coisas deveriam ter sido afetadas pelo fenômeno mas, incrivelmente, apenas o fornecimento de eletricidade foi interrompido. As teorias dizem que eventos dessa natureza parariam marca-passos, automóveis e dispositivos eletrônicos em geral. Nada disso aconteceu e a nossa equipe está aproveitando a situação para observar e analisar os fatos. Enquanto isso, a cidade procura continuar a vida, com velas acesas, geradores a diesel ronronando em porões e galpões, casais furtivos aproveitando a súbita escuridão. Já os jornalistas se atormentam noite a dentro em busca de especialistas e autoridades que tenham uma resposta ou uma daquelas perguntas que parecem resposta. Mas as autoridades não sabem nada. Nosso trabalho está muito além das autoridades.

Estamos aqui no laboratório, muito atentos a cada detalhe de tudo que se passa. A bolha, contrariando os otimistas também de plantão, não para de crescer. Esse é o tipo de notícia que eu não gostaria de dar numa entrevista coletiva. Após uma rápida e monumental expansão inicial, que engoliu praticamente toda a cidade, a bolha continua a se expandir, muito lentamente, a partir do seu centro geométrico: o Maracanã.

É isso aí. O Maracanã é o centro irradiador dessa coisa devoradora de mundos, que avança rua a rua, quadra a quadra, consumindo invisivelmente o Rio de Janeiro. E o que eu vou revelar agora nessas linhas é algo que ninguém sabe. Você não sabe e ninguém que você conhece sabe. Ninguém acima de você no seu trabalho, ou acima de quem quer que seja, em qualquer trabalho que você tenha ouvido falar, sabe. Mas eu sei. Eu e um grupo muito restrito de pessoas. Penso, às veze, se é mesmo possível denominar alguém conhecedor de algo assim como uma pessoa. O que é uma pessoa? Alguém que come um hambúrguer numa birosca da esquina, alguém que chega atrasado na repartição… Ao escrever para você, um estranho que viu pular a notificação dessa mensagem no celular, eu mesmo me pergunto se é verdade. Pergunto-me o que é a verdade e como me meti nessa fábula estranha.

Você vai achar que é mentira, porque tem tudo para ser mentira. E, afinal, talvez seja. Talvez seja mentira somente uma outra forma da realidade. Algo que se insurge quando lidamos com o que lidamos aqui, esse lugar obscuro de onde escrevo para dizer que os subterrâneos do monumental estádio Mario Filho abrigam a mais louca experiência científica brasileira. A derrota de 50, os minutos de silêncio sob o manto das vaias, gols anulados e a memória de jogos inesquecíveis que não assisti repousam sobre um acelerador de partículas pan-dimensional, o Maracatron. O monstrengo, como você pode imaginar, opera secretamente e eu não tenho a menor ideia de quem paga nossos salários. Se o governo sabe? Mais ou menos como somente o Papa sabia do Terceiro Segredo de Fátima, se é que você entende o que quero dizer. De fato temos diariamente discussões sobre o que é ter conhecimento de algo. Não tenho também qualquer noção da dimensão do que está acontecendo; sei apenas que esse aparelho é parte de um projeto maior, o desenvolvimento de, claro, uma máquina do tempo. A melhor frase que eu conheço sobre máquinas do tempo é do Jadeir, nosso Engenheiro Adjunto para Raios Catódicos:

— Depois que você vê funcionando nem é tão interessante assim!

Mas bem poderia ser um gigantesco veículo de transporte intergalático ou ainda uma Terra artificial numa dimensão paralela ou transversal. Quem sabe… Há coisas que nem eu mesmo, envolvido até quase o pescoço como estou, sei. O que sabemos é que com certeza afetamos, durante os bombardeios quânticos, as decisões dos juízes, a trajetória da bola nos cruzamentos e cobranças de escanteio. Lances inexplicáveis, amigos do esporte, têm sua explicação na malha de fibras óticas e circuitos que percorre toda a circunferência do estádio. A linha de impedimento se desloca muitas vezes de acordo com cálculos complexos que nossos computadores elaboram para descrever partículas que nem existem. Mas o que importa mesmo, para além desse palavreado todo, é que agora essa bolha plasmática, à falta de um nome melhor, prossegue avançando sobre estradas, casas e supermercados, sobre as pessoas! Não sabemos das conseqüências e estamos curiosos para saber, para anotar, analisar e confrontar com outros dados que temos armazenados e outros que virão. Mas virão mesmo? Haverá depois?

Agora mesmo há uma vibração e um zunido que não havia antes e não sei bem qual a razão disso. Pode ser até o cansaço, mas tenho a impressão de que alguns objetos parecem desfocados. Outro dia li um livro sobre desastres quânticos e criação artificial de buracos negros. Vá apressando a leitura dessa missiva, porque esse tal livro já falava dos zunidos e vibrações que precedem o colapso da trama do espaço-tempo. E que a coisa está evoluindo, parece que nós aqui não teremos que dar explicações a sociedade.