Cidade do caos | Parte I

Hoje, na Revista Kuruma’tá, temos a honra e alegria de receber um trabalho de Octavio Aragão, bravo escritor com três romances e inúmeros contos, publiocados em diversos países, e criador do inventivo projeto Intempol. Octavio nos chega com o inédito Cidade do Caos, um conto em quatro partes, escrito em 2017 e simplesmente atual e necessário nesse 2019 que se encaminha para o fim.

Eu e Octavio, em 2010, sob os auspícios da de Elisa Ventura, da Blooks Livraria, engendramos o SpaceBlooks, um encontro das feras da Ficção Científica no Brasil. E o Brasil do jeito que tá pede mais encontros, mais contos como o de Octavio! Que venham!

E agora, com vocês, a primeira parte de Cidade do Caos, de Octavio Aragão! Seja muito bem-vindo à Kuruma’tá!

Toinho Castro (Editor)

Noveleta de Octavio Aragão


– Será um filme diferente – Rabbio, bateu com a xícara de café na quina da mesa, respingando na calça manchada de tinta. As gotas logo entraram em comunhão com a padronagem, assumindo uma invisibilidade camuflada – Uma mistura de documentário e ficção.
– Isso não tem nada de diferente – Gautério, atento à porta do botequim, sequer alterou o semblante – O Resnais já fez. É superestimado, mas tá lá, existe.
– Seria diferente. Vamos mexer com o inconsciente desta cidade, mesclar artes plásticas e cinema como ninguém fez antes.
– Nem o Warhol?
– Você está de sacanagem com a minha cara? Eu sou Carlo Rabbio. Você é Gautério Pedro. Quem é esse tal de Warhol? Um impressor de camisetas, um artista de circo, uma farsa. Faremos o filme definitivo, um documentário sobre estes dias fétidos, uma metáfora da ditadura…
– Outra? Só eu já fiz duas – Gautério olhou em torno, discretamente. O governo militar costumava pegar leve com artistas premiados internacionalmente, mas não era bom arriscar discursos subversivos em lugares públicos. Felizmente, o único prestando atenção neles era o garçom, que se aproximava com o pedido. Feijoada no verão é coisa de gringo, ou seja, coisa do Rabbio.
– Não venha me falar do Lua em Trâmite, aquilo não é metáfora, é uma tentativa de filmar George Orwell com abacaxis no Parque Lage. É uma chanchada. Boa chanchada, mas ainda assim…
– Também não gosto muito do filme, mas é meu e enchi o rabo de dinheiro com ele. Ainda ganhei uns prêmios aqui e ali. Não vou cuspir para cima. Mas o que me diz de Os Três Reis Magos à Porta da Babilônia? Também não gosta?
– Alegorias… alegorias… – disse Rabbio com a boca cheia, caldo de feijão salpicando a barba – Estou falando de algo épico, real. Câmera na mão, sim, mas com o mundo aos nossos pés, emoção crua.
Gautério bebeu o chope, sempre com colarinho para manter a temperatura, e fez uns cálculos mentais. A ideia não era tão genial assim, mas tinha suas qualidades, sendo que a principal era o custo baixo. E também seria uma obra de caridade com o amigo, depois do fiasco no Museu de Arte Moderna.
Rabbio tinha sido convidado com toda a pompa para expor suas obras mais recentes – as Parcas Porcas, três esculturas orgânicas concebidas com carcaças de suínos, trapos e galhos de árvores – e, por conta da dificuldade de transporte (e do cheiro) foi obrigado a deixá-las do lado de fora do museu um dia antes da vernissage. O vigia noturno, sujeito muito cioso de sua função, porém pouco afeito a ler a programação do Museu, ao se deparar com aqueles monturos apoiados na parede, provavelmente obra de algum vândalo, não pensou duas vezes e jogou tudo dentro dos contêineres de lixo. Foi um dia animado, que começou com todo mundo correndo ao aterro sanitário para tentar resgatar as peças antes que se deteriorassem por completo e terminou com uma sala empesteada no MAM. Dizem que até hoje, um ano depois do ocorrido, ainda dá para sentir o cheiro e a consequência principal foi Rabbio virar sinônimo de piada no mercado de artes plásticas.
– Deixe ver se entendi, você quer refazer as Parcas Porcas e filmar as reações das pessoas, é isso?
– Basicamente. Percebi que o grande barato daquele fiasco do ano passado foi o que não percebemos, a interação do público com as obras, o quanto elas impactaram sensorialmente quem as observou a ponto de forçarem uma ação retaliativa.
– Por sensorialmente você se refere ao cheiro ou à aparência?
– Também, também… mas o importante foi que aquilo era tão repulsivo que forçou o porteiro a tomar uma atitude. E se conseguíssemos reprisar esse tipo de reação, mas fazendo um paralelo com, sei lá, o governo, os militares? Se juntássemos as duas podridões e jogássemos esse símbolo na cara do povão? Por exemplo, na Central do Brasil, às sete da manhã. Ou melhor, no Rio Maracanã, boiando? O que as pessoas fariam? É um roteiro improvisado, mas acho que dá muito pano pra manga. Poderíamos ter uma obra prima nas mãos.
Gautério pegou outro chope, como se quisesse afogar o lado esquerdo do cérebro em álcool. Tudo aquilo começava a fazer sentido.
– Olha, pode dar certo, mas não vou investir um centavo nisso. Vou usar restos de filme, ok? No final, talvez possamos fazer uma produção surrealista tipo Buñuel.
Rabbio bateu na mesa com força. Os garçons, essa espécie que raramente olha quando precisamos, viraram as cabeças como em uma parada de sete de setembro.
– Não, nada de surrealismos. Vamos nos ater aos fatos. A única ficção virá dos transeuntes. É sobre isso que construiremos a história. O povo escreverá o filme. Quanto ao dinheiro, não se preocupe. Darei um jeito. Sabe, ainda haverá um dia em que todos teremos uma câmera, cada cidadão poderá gravar seu dia-a-dia e mostrar ao mundo.
– Sei, todo mundo mostrando o que faz dentro de quatro paredes – Gautério gostava de Rabbio por causa dessas viagens – E perdendo o pouco de privacidade que ainda temos. Esse será um dia que prefiro não ver.

Continua…