As origens do Coringa não estão nos quadrinhos

Texto de Eduardo Frota


Nunca fui fã das histórias em quadrinho de super-heróis e, por conseguinte, de suas adaptações para a tela grande. Em grande parte, meu descontentamento vem do maniqueísmo de cartilha que impede a construção mais aprofundada do comportamento tanto dos heróis quanto dos vilões. Comumente, o bem e o mal precisam de estereótipos para sustentar a simpatia e a antipatia do leitor – ou espectador – para que as revistas – ou filmes – rendam alguns trocados.

Imagine o Batman jogando uma guimba de cigarro na rua, ou o Homem Aranha avançando um sinal vermelho, ou o Capitão América não cedendo seu lugar num vagão de metrô lotado para uma senhora de idade.

O filme do Coringa passa longe de estar na prateleira de adaptação de histórias em quadrinho. Nem mesmo é um filme sobre vilania. Não fosse a personagem sabidamente a antagonista do Batman, seria uma produção dramática com um certo viés noir. É, sim, um filme de formação.

Não vou falar da atuação monumental de Joaquin Phoenix, nem da iluminação, nem da montagem, nem da edição, nem da fotografia… Muito se falou também das referências ao “Rei da Comédia”, inclusive com a participação de seu protagonista, Robert de Niro.

Mas pra mim, é impossível não lembrar de duas figuras, uma da música e outra do folclore medieval.

A primeira é GG Allin, vocalista de uma banda obscura de punk rock chamada The Murder Junkies. Os shows não eram famosos por conta da música que tocavam, mas sim pelo festival de escatologia que Allin promovia no palco, que incluía defecar ao vivo, beber xixi de prostitutas, bater com o microfone na testa até sangrar e se mutilar com lâminas de barbear. As pessoas pagavam para ver um ser humano incapaz e decadente se humilhar por alguns míseros dólares.

O resultado disso foi o suicídio de Allin, que tinha plena consciência do que fazia e assim o fazia para entreter uma dúzia de espectadores. Todd Phillips, bem antes de ser alçado ao estrelato com sua franquia “Se beber, não case”, fez um documentário perturbador sobre ele, chamado “Hated”. Um dos filmes mais difíceis e pesados que já vi.

Guardadas as devidas proporções, lembra a cena do número de stand up comedy de Coringa.

A outra figura que o Coringa me lembrou é o personagem do século 16, não se sabe se fictício ou real, Till Eulenspiegel. Reza a lenda que ele era um bufão miserável que, expulso da corte por seus números extravagantes, andava por vários reinos fazendo troça dos mais abastados – incitando, inclusive, levantes contra a igreja e a nobreza. O nome do nosso acento ortográfico é exatamente uma alusão à figura de Till, que era considerado um “herói torto” das massas.

Guardadas as devidas proporções novamente, impossível não lembrar da luta de classes que serve como pano de fundo em “Coringa”.

O riso cínico do Coringa, que quando ainda era Arthur era encarado como um problema neurológico, é também uma tomada de consciência quase impossível em uma história em quadrinho do Batman. Não há tempo, naquele suporte, para dirimir o maniqueísmo.

Só queria dizer isso mesmo.

Escultura em bronze: Gerhard Marek, Foto: Christine Faust