Lembrando Luiz Gonzaga, antes que seja tarde

Texto de Aderaldo Luciano


Porque hoje é dia da virada do mês de janeiro de 2020, vou recontar esse momento sutil. Enquanto descia de Santa Teresa, num tempo bem passado, com o ator Beto Quirino, com o saudosíssimo poeta Chico Salles e com o também poeta Ivamberto Albuquerque, eu procurava na imaginação o disco gonzagueano no qual o Rei do Baião encantara para a eternidade suas versões para canções completamente estranhas ao seu repertório tradicional.

O Canto Jovem de Luiz Gonzaga veio e vem, de certa forma, contrapor-se ao discurso segregador. Procurando um melisma que também avoasse pelo dissonante, a sanfona e a voz do bardo encaixaram-se com certa delicadeza, mastigando mansamente as notas quase deslocadas da bossa nova e do tropicalismo.

Naquele disco não havia arranjos sertanejos, rascantes, severos. Havia, e está lá, um diálogo com o que se chamava, na época, de novo, de jovem. Gonzaga teve coragem, enfrentou. A célebre Caminho de Pedra, de Tom e Vinícius, é um ponto a se prestar bem atenção. Em Asa Branca, com alguma novidade no arranjo, a participação de Gonzaguinha marcará o reencontro de pai e filho.

Seguem-se Nelson Mota, Dori Caymmi, Antonio Carlos e Jocafi, Capinan e Edu Lobo, presentes. Note-se a fotografia de capa tendo como cenário o Edifício Avenida Central, no Largo da Carioca, no Rio de Janeiro. Note-se, ainda, a pose e o figurino atualizado à cidade e à moda bossanovidadosa. As faixas:

    1. Chuculatera (Jocafi – Antônio Carlos)
    2. Procissão (Gilberto Gil)
    3. Morena (Gonzaguinha)
    4. Cirandeiro (Capinan – Edu Lobo)
    5. Caminho de Pedra (Tom Jobim – Vinicius de Moraes)
    6. Asa Branca (Luiz Gonzaga – Humberto Teixeira)
    7. Vida ruim (Catulo de Paula)
    8. O milagre (Nonato Buzar)
    9. No dia que eu vim me embora (Caetano Veloso – Gilberto Gil)
    10. Fica mal com Deus (Geraldo Vandré)
    11. O cantador (Nelson Motta – Dori Caymmi)
    12. Bicho, eu vou voltar (Humberto Teixeira)
https://www.youtube.com/watch?v=DdluVJcY9hs

O Nordeste continuaria existindo caso Luiz Gonzaga não tivesse aterrissado por lá há cem anos. Teria a mesma paisagem, os mesmos problemas. Seria o mesmo complexo de gentes e regiões. Comportaria os mesmos cenários de pedras e areias, plantas e rios, mares e florestas, caatingas e sertões. Mas faltaria muito para adornar-lhe a alma. Sem Gonzaga quase seríamos sonâmbulos.

Ele, mais que ninguém, brindou-nos com uma moldura indelével, uma corrente sonora diferente, recheada de suspiros, ritmos coronários, estalidos metálicos. A isso resolveu chamar de BAIÃO.

Gonzaga plantou a sanfona entre nós, estampou a zabumba em nossos corpos, trancafiou-nos dentro de um triângulo e imortalizou-nos no registro de sua voz. Dentro do seu matulão convivemos, bichos e coisas, aves e paisagens. Pela manhã, do seu chapéu, saltaram galos anunciando o dia, sabiás acalentando as horas, acauãs premeditando as tristezas, assuns-pretos assobiando as dores, vens-vens prenunciando amores.

O olhar de Gonzaga furou o ventre de todas as coisas e seres, escaneou suas vísceras, revirou seus mistérios, escrutinou suas entranhas. A mão do homem deslizou pelas teclas sensíveis da concertina, seus dedos pressionaram os pinos, procurando os sons baixos e harmônicos. Os pés do homem organizavam o primeiro passo, sentindo o caminho, testando o equilíbrio. A cabeça erguida, o queixo pra frente, a barriga desforrada e o pulmão vertendo cem mil libras de oxigênio, vibrando as cordas vocais: era Lua nascendo.

O peito de Gonzaga abrigava o canto dolente e retotono dos vaqueiros mortos e a pabulagem dos boiadeiros vivos. As ladainhas e os benditos aninhavam-se por ali buscando eternidade. Viva Luiz Gonzaga do Nascimento, sempre na mira de nossos corações.