Recife Revista Kuruma'tá, 13 de março de 202013 de março de 2020 Texto de Toinho Castro Hoje, 12 de março, a cidade do Recife faz aniversário. Em dias assim, eu que estou longe, acabo assaltado por lembranças. Elas me chegam embaralhadas, truncadas. Lembranças sempre noturnas. As noites do recife, quando eu a atravessava pra lá e pra cá, com amigos, às vezes sozinho, sacolejando no ônibus, Jordão Baixo ou Encruzilhada / Boa Viagem. Em busca de uma cerveja gelada, de amigos pra conversar. A desolação da Avenida Sul, arruinada, como um filme pós-apocalíptico… certa praça que eu adorava, por trás do Museu do Estado, cheia de eucaliptos. Memória da memória… começo já a lembrar das lembranças, como se alguém, em mim, me contasse. Certa noite, num bar com uma amiga, olhamos para a rua de frente pra nós e vimos, num sobrado velho, como pareciam todos os sobrados, uma placa: Clube dos Mágicos. Rimos e nos espantamos… era tarde da noite e ficamos imaginando o que poderia estar acontecendo ali dentro, a portas trancas, janelas cerradas. A reunião dos mágicos sombrios da cidade, aquela cidade assombrada em que éramos fantasmas. Teve essa lua cheia, nascendo no horizonte escuro do mar, do Atlântico, que parecia uma explosão nuclear, como uma bolha alaranjada E eu quis que fosse uma explosão nuclear que rompesse o tédio daqueles dias, mas era a lua. Voltei pra casa, na Imbiribeira, sempre de ônibus, sempre de noite. Sim, lembranças sempre noturnas, com o cheiro do jasmim que minha mãe plantou, que cresceu e floriu tantas vezes. Já naquela época eu li um texto de Jorge Luis Borges em que ele falava dessa eternidade noturna. Nenhuma casa se aventurava à rua; a figueira escurecia a esquina; os portõezinhos – mais altos que as alongadas linhas das paredes – pareciam trabalhados com a mesma substância infinita da noite.(Jorge Luis Borges, em Nova refutação do tempo; traduzido por Sérgio Molina) Talvez seja isso. Talvez eu tenha eternizado Recife uma longa noite, em que tudo aconteceu… o Clube dos Mágicos, o rio moroso, arratando-se sob as pontes, o pontilhão da Rede ferroviária cruzando por sobre a Avenida Sul, o terreno na esquina da minha rua onde por tantos anos houve somente mato. E eu, criança, fantasiava um reino secreto, escondido naquele terreno, um reino vagaluminoso e inalcançável, que me era como uma intuição. No seu centro remoto jazia o que teria restado do vasto manguezal que fora um dia tudo aquilo, todas aquelas ruas. Como sempre trata-se do que não mais existe. Alcançar esse centro não me é dado. Por isso não penso no Recife como um lugar em que eu possa ir. A cidade que visito ocasionalmente, e que também se chama recife, pertence a outras pessoas, que a recordarão um dia, onde quer que estejam, como se lhes pertencesse. Reservo-me o folhear de minhas páginas noturnas. E quando desço do avião, no Aeroporto dos Guararapes, eu as fecho, essas páginas, para que não se confundam com o que verei, para queeu não me confunda e pense que voltei. recife me esperaem algum lugar do mapaa cerca de duas horasde onde agora me encontroem altitude de cruzeiroacalantadopelo rugidodas turbinas da janela posso ver um rioque não é o capibaribe— lá longe ainda —mas que tem aquelacor de enchenteque reconheçoenchente que ansiei em 1975e que nunca chegouna imbiribeira na velocidade do jatoficou pra trás o rio sem nomebarrentoficaram pra trás na memóriaa imbiribeirae a cheia de 75num lugar onde mal podemser alcançadas à frente desse vooresta um recife irreconhecívelidioma que não compreendointraduzíveloutra cidadesobre a cidade em que vivicomo aquelas cidadesconstruídas sobre uma colinaoutra colinamil colinas minha rua ter sido asfaltadajá diz muitoesperamos tanto aquele asfaltouma vida inteira com a rua de terracheia de buracose enlameada quando vinha a chuvapro asfalto chegar tarde demais pensando hoje na minha ruaé como se tivessem explodido uma bombaque matou algunse espalhouos outros moradorespelo mundonas mais inesperadas direções e depois asfaltaram tudopara que não houvesse provaspara que não houvesseevidênciaspara que ninguémachasse o caminho de volta Poema de Toinho Castro publicado em Lendário Livro – Editora Rubra, 2018 A AfetoImbiribeiraMemóriaNoiteRecifeToinho Castro
Viva Recife, O Clube dos Mágicos, La Ursa, O Carnaval, Filmes, Maracatu e o Sotaque dos meninos que saltam da beira do cais Responder