Recife

Texto de Toinho Castro


Hoje, 12 de março, a cidade do Recife faz aniversário. Em dias assim, eu que estou longe, acabo assaltado por lembranças. Elas me chegam embaralhadas, truncadas. Lembranças sempre noturnas. As noites do recife, quando eu a atravessava pra lá e pra cá, com amigos, às vezes sozinho, sacolejando no ônibus, Jordão Baixo ou Encruzilhada / Boa Viagem. Em busca de uma cerveja gelada, de amigos pra conversar. A desolação da Avenida Sul, arruinada, como um filme pós-apocalíptico… certa praça que eu adorava, por trás do Museu do Estado, cheia de eucaliptos. Memória da memória… começo já a lembrar das lembranças, como se alguém, em mim, me contasse. Certa noite, num bar com uma amiga, olhamos para a rua de frente pra nós e vimos, num sobrado velho, como pareciam todos os sobrados, uma placa: Clube dos Mágicos. Rimos e nos espantamos… era tarde da noite e ficamos imaginando o que poderia estar acontecendo ali dentro, a portas trancas, janelas cerradas. A reunião dos mágicos sombrios da cidade, aquela cidade assombrada em que éramos fantasmas.

Teve essa lua cheia, nascendo no horizonte escuro do mar, do Atlântico, que parecia uma explosão nuclear, como uma bolha alaranjada E eu quis que fosse uma explosão nuclear que rompesse o tédio daqueles dias, mas era a lua. Voltei pra casa, na Imbiribeira, sempre de ônibus, sempre de noite. Sim, lembranças sempre noturnas, com o cheiro do jasmim que minha mãe plantou, que cresceu e floriu tantas vezes. Já naquela época eu li um texto de Jorge Luis Borges em que ele falava dessa eternidade noturna.

Nenhuma casa se aventurava à rua; a figueira escurecia a esquina; os portõezinhos – mais altos que as alongadas linhas das paredes – pareciam trabalhados com a mesma substância infinita da noite.
(Jorge Luis Borges, em Nova refutação do tempo; traduzido por Sérgio Molina)

Talvez seja isso. Talvez eu tenha eternizado Recife uma longa noite, em que tudo aconteceu… o Clube dos Mágicos, o rio moroso, arratando-se sob as pontes, o pontilhão da Rede ferroviária cruzando por sobre a Avenida Sul, o terreno na esquina da minha rua onde por tantos anos houve somente mato. E eu, criança, fantasiava um reino secreto, escondido naquele terreno, um reino vagaluminoso e inalcançável, que me era como uma intuição. No seu centro remoto jazia o que teria restado do vasto manguezal que fora um dia tudo aquilo, todas aquelas ruas.

Como sempre trata-se do que não mais existe. Alcançar esse centro não me é dado. Por isso não penso no Recife como um lugar em que eu possa ir. A cidade que visito ocasionalmente, e que também se chama recife, pertence a outras pessoas, que a recordarão um dia, onde quer que estejam, como se lhes pertencesse. Reservo-me o folhear de minhas páginas noturnas. E quando desço do avião, no Aeroporto dos Guararapes, eu as fecho, essas páginas, para que não se confundam com o que verei, para queeu não me confunda e pense que voltei.

recife me espera
em algum lugar do mapa
a cerca de duas horas
de onde agora me encontro
em altitude de cruzeiro
acalantado
pelo rugido
das turbinas

da janela posso ver um rio
que não é o capibaribe
— lá longe ainda —
mas que tem aquela
cor de enchente
que reconheço
enchente que ansiei em 1975
e que nunca chegou
na imbiribeira

na velocidade do jato
ficou pra trás o rio sem nome
barrento
ficaram pra trás na memória
a imbiribeira
e a cheia de 75
num lugar onde mal podem
ser alcançadas

à frente desse voo
resta um recife irreconhecível
idioma que não compreendo
intraduzível
outra cidade
sobre a cidade em que vivi
como aquelas cidades
construídas sobre uma colina
outra colina
mil colinas

minha rua ter sido asfaltada
já diz muito
esperamos tanto aquele asfalto
uma vida inteira com a rua de terra
cheia de buracos
e enlameada quando vinha a chuva
pro asfalto chegar tarde demais

pensando hoje na minha rua
é como se tivessem explodido uma bomba
que matou alguns
e espalhou
os outros moradores
pelo mundo
nas mais inesperadas direções

e depois asfaltaram tudo
para que não houvesse provas
para que não houvesse
evidências
para que ninguém
achasse o caminho de volta

Poema de Toinho Castro publicado em Lendário Livro – Editora Rubra, 2018