Historinha de máscaras

Texto de Nonato Gurgel


Ah quantas máscaras e submáscaras,
Usamos nós no rosto de alma
Fernando Pessoa


Era uma vez um planeta lindo e animado. Seus habitantes viviam no maior agito, na maior correria. Todos viajavam, consumiam, ninguém ficava quieto. Quanto mais acelerado, mais imprescindível. Tinha shopping, escada rolante, open house, igreja, escola, academia. Muito pasto, muito prazo, carne, boleto, fumaça e p(r)egação.

Naquele planeta poluído e desigual, tudo continuava trepidante, postergado, até que um vírus declamou Drummond: ‘Stop. A vida parou…’, e depois tocou Raul: ‘Plunct plact zum/ não vai a lugar nenhum’. O vírus curtia também a Tropicália, e releu os seus dois principais ícones: é preciso estar atento e só/ eu preciso refazer o só ser.

O planeta animado teve que passar uma segunda. A galera ficou zoada. Outros hábitos: niver com abraços virtuais, casamento via celular, classes média e alta lavando banheiros e panelas, descobrindo o óbvio: a faxineira põe o mundo para funcionar. Além de ficar isolado, pouco abraço. É preciso intensificar a higiene, rever alimentos, ficar imune dá trabalho. Para ir às compras, melhor usar máscaras, não é nada encantadora a alma das ruas onde tio eros perde agora de goleada para thanatus.

Excessos de si

Nas telas nossas de cada dia, a pandemia revelou a alminha global de cada país em tempos de necropolítica. Um país pediu para seus habitantes ficarem em casa e ler; outro, desprezou as recomendações da ciência e sugeriu jejum; teve país que enviou médicos, e teve país segurando máscaras, feito burguês empilhando carrinho em supermercado.

Quarentena prorrogada, qual o novo ritmo do planeta? Pessoas trancadas ficarão mais próximas? O futuro dirá, mas a gente sabe que quando pessoas se juntam, alguma coisa acontece. Já aconteceu. Duas semanas depois dos humanos fora da parada, os ares das cidades ficaram mais leves, os mares transbordaram. Coiotes passeiam livremente pelas ruas de São Francisco, um lobo circula por Volta Redonda. Peixes, cisnes, patos, a quarentena tornou mais cristalinas as águas de Veneza, e o Quartier Latin de Paris foi invadido por patinhos.

A bicharada voltou a ocupar o planeta. ‘Humanos, só os reinventados’, disse o pássaro descontraído, sem máscara nem jejum, em visita ao poeta e amigo João.