Filhos da Quarentena: uma luz negra de arte que brilha em Londres

Texto de Eduardo Maciel


Ilustração de Simon Seddon

Olá, kurumateiros confinados!
(FIQUEM EM CASA) 

Em uma das minhas viagens a Londres, há tempos atrás, um grande, grande amigo meu artista, lá radicado, me apresentou ao Simon, já beirando meio século de vida. A partir desse encontro, tive acesso à sua obra, de uma vida inteira, composta de desenhos e ilustrações de inspiração noir.

Obra extensa, de extrema qualidade. Toda ela engavetada. 

Fiquei à época estupefato com aquilo, imaginando como um artista de mão cheia, tão ativo em sua produção desde a infância, não permitia que seu trabalho visse a luz do dia. Ou da noite, como creio ele preferir…

No entanto, respeitoso que sou, aceitei aquele ostracismo como escolha pessoal, apesar da satisfação por ter tido acesso a algo então exclusivo. Algo excelente, devo frisar.

E eis que agora, esse nosso amigo em comum, igualmente talentoso e quase tão tímido e introspectivo, me disse que ele havia criado um perfil no Instagram em tempos de confinamento para mostrar o seu trabalho. Antes tarde do que nunca, não é mesmo?

Aproveitei o momento para entrevistá-lo: sua primeira entrevista formal, por assim dizer. Uma honra para mim!

Mas antes das perguntas e respostas, quero apresentar a vocês o barril de carvalho francês (ou inglês) que abriga esse finíssimo vinho criativo. Vamos lá!

Simon Seddon foi sempre inspirado pelo melancólico, gótico e sobrenatural. Reunindo inspiração vinda de diversas fontes dentro da literatura e da cultura popular, ele trabalha através de suas narrativas usando lápis, caneta de tinta preta e papel comum.

Desejando originalmente ser um ilustrador de moda, ele foi incentivado a treinar para se tornar um teórico abstrato das cores, embora confirmasse seu amor pelo monocromático. Ele se permitiu à liberdade e disciplina através do processo de pintura para controlar o plano ilustrativo da imagem com uma abordagem mais subversiva.

Deu pra entender a densidade?
Então. Agora a entrevista:


O que te levou para a arte? 

Desde muito cedo, respondi ao mundo que me rodeava desenhando. As primeiras lembranças incluem a capa de um caderno de desenho, desenhos nas paredes de casa e o fascínio pelas diferenças entre as minhas interpretações e as do meu irmão gêmeo, sobre exatamente as mesmas coisas. Eu lutei academicamente durante toda a minha vida escolar, portanto a minha própria narrativa seria o óleo para pulsar minha criatividade e me ajudar a entender o mundo ao meu redor. 

Meu pai se suicidou quando eu era criança. Ele também tinha arte dentro dele. Era escultor. E exerceu uma influência mística em mim, sendo minha “criatividade” o único elemento de inspiração que eu carreguei dele. 

Quando e como foram o seu “despertar”?

Lembro-me de fazer um desenho de uma bruxa muito bonita (os contos de fada sempre exerceram um fascínio especial em mim). Levei a obra para a escola como parte de um projeto escolar. As crianças da minha turma não acreditaram que o desenho havia sido feito por mim. Apesar de ter me deixado com raiva, aquilo me gerou uma emoção estranha. A partir daquele momento, coloquei-me em competição direta e na mesma trajetória de outros operários da arte. De lá, fui para uma escola estadual muito estranha que, embora fosse academicamente pobre, por outro lado, tinha um departamento de arte incrível! Era como uma prisão que você deixava todas as noites e voltava pela manhã. Finalmente saí de lá aos 16 anos, sem qualificações. Eu havia me beneficiado muito com o entusiasmo e o incentivo do conhecimento dos tutores de arte. Eles foram levados a sério por mim, permitindo que eu me preservasse contra certos obstáculos. Eu e meu irmão (que também tem dons artísticos) passaríamos os próximos anos nos educando sozinhos e ficamos famintos por informações e idéias que alimentavam nossos sonhos e ambições – um desejo tão forte que nos envolveu como um oceano.

Considera que ser artista é algo que a gente nasce sendo ou que é algo que pode ser feito por quem quiser estudar pra ser?

Essa é uma pergunta difícil e só pode ser respondida em nível pessoal. É uma percepção mercurial que muda nos momentos-chave da sua vida criativa.

Carregado de preconceitos, o termo “artista”, é abordado em um contexto aspiracional, ou como rótulo de autenticação, ou ainda um elogio alcançado quando se pode ganhar a vida com esse rótulo, ao mesmo tempo que pode também excluir, desvalorizar e depreciar os impulsos criativos em alguns casos. 

Então, o que faz de alguns um artista? Acredito que alguns nascem mais intuitivamente criativos do que outros. Também acredito que existem diferentes níveis de criatividade os quais, sem serem nutridos ou reconhecidos cedo, recuam dentro dos indivíduos e como um desejo ou arrependimento, tornam-se quase que um fardo e um terrível desperdício de potencial, mas o mais importante nunca desaparece. Analisando por outro ponto de vista, há um fascinante preconceito que estudantes do ensino médio e nível universitário guardam: o de que a arte é a opção mais fácil em comparação com outras escolhas. Se começarmos com nessa noção, sendo desprovidos de compulsão ou imaginação, podemos perseguir a arte e sermos um artista – como uma opção facilmente alcançável. Uma opção em que simplesmente se está aderindo a um conjunto de “regras”, com as ferramentas certas, certos privilégios, intuição, confiança e plano de jogo definido. Todos podem com toda a certeza chegar, em algum momento, ai destino desejado. Por se separarem do elemento emocional compulsivo, eles se transformam em uma mercadoria com a qual seu objetivo pode ser direcionado. Não existe um caminho certo ou errado. Pessoalmente, sinto que o que me faz um artista é a compulsão em relação à narrativa do meu processo criativo e isso define o meu objetivo nesse sentido.

A arte é a linguagem ou a voz perturbadora do subconsciente e nós a utilizamos ou não. Meu conselho para os outros é: permita-se ser assombrado por essa voz.

De onde vem a sua inspiração?

Eu sempre amei imagens em geral. Uma inspiração é desencadeada por um quadro ou mais precisamente um quadro vivo, seja visual ou audível, pinturas, ilustrações de livros infantis, fotografias de moda ou uma cena em um filme. Eu não discrimino. Isso evocará um flash momentâneo como um pedaço vida em movimento ou ainda um filme que virá com sua própria narrativa, quase como uma visão, memória perdida ou sintonia com o outro lado em uma sessão espírita. Fico fascinado pelo melancólico e por aquele instante em que algo misteriosamente chama nossa atenção naquela área de nossa periferia visual. Momentos fantasmas e personagens ilusórios, cuja verdadeira identidade permanece um mistério. As mulheres são em grande parte as protagonistas do meu trabalho, e eu concordo com a escritora Angela Carter, que defendeu sua escolha de personagens e disse algo como: “Eu escrevo sobre mulheres porque as mulheres são mais interessantes que os homens.” 

Simples assim. E como fui criado em uma casa de mulheres, para mim isso é verdade. Com o tempo, algumas dessas visões são arquivadas em uma gaveta para nunca mais voltar e outras são persistentes e atravessam seus ossos e fazem o trabalho por você. Nos últimos 20 anos, a palavra escrita se tornou uma nova fonte de minha inspiração. Particularmente os contos, que se adequam à minha imaginação. Uma parte da música (geralmente um pequeno movimento em uma composição muito maior) pode desencadear uma imagem e seguirei a narrativa dessa idéia ou devaneio, como um eco de eventos imaginados. Suponho que amo o belo e o sinistro em igual medida, de modo que meu trabalho é uma transmutação dos dois. Por mero acaso, li recentemente um artigo sobre a cantora folclórica inglesa Frazey Ford, sobre a sobrevivência e sua educação traumática. Ela cita: “meu irmão mais velho me indicaria a beleza, mesmo se estivéssemos em uma situação perigosa. Se você tem o senso de beleza, você pode sobreviver às coisas.”

Como funciona o seu processo criativo? 

Quando começo a construir uma idéia, aprendi a não esperar que o trabalho final seja uma cópia desse primeiro “flash” ou visão! Com o tempo, aprendi apenas a usá-lo como chave, obtendo acesso a uma biblioteca interna que possui tudo o que é relevante para desenvolver ainda mais aquela idéia; esse é o período que chamo “casulo”. Inicialmente, começo com uma série de desenhos a lápis soltos ou “desenhos animados”. Alguns serão a idéia em sua forma básica original, rostos, figuras, móveis, etc.. Em seguida, eu começo a eliminar alguns elementos de forma rápida, quase brural. A atividade dentro deste casulo é o processo de edição, que ao cabo é o componente mais vital para qualquer processo criativo e uma habilidade necessária de aprendizagem. Quando estou satisfeito com a estrutura, começo a ajustá-la, ainda trabalhando a lápis, e a próxima etapa do treino começa. Essa é a parte mais horrível para mim e a mais exigente psicologicamente. O que se torna importante agora é o equilíbrio de objetos no plano da imagem. Um deve estar em conformidade com o outro, permitindo que o espectador corrija a passagem pelo espaço usando truques visuais sutis que o guia, quase como num mapa secreto. Esse estágio pode ser descrito como uma dança perversa, puxando uma pele sobre um esqueleto para ajustá-lo. Depois de concluída, a tinta preta deve ser aplicada e, novamente, a imagem será transformada ainda mais e surpreenderá você. A conclusão da imagem a partir deste ponto é muito lenta e exigente, e ao mesmo tempo desagradável, mas incrivelmente satisfatória.

Qual a mensagem que deseja transmitir com o que produz?

Permaneça fascinado com o passado, ou mais precisamente com elementos do passado, pois existem tesouros fabulosos enterrados sob o subconsciente das culturas. 

Não dê muita importância à relevância imediata, mas permita-se ser enfeitiçado pelo oculto e aparentemente sem importância. 

Utilize o passado como uma rota para o futuro. Não foque muito seu interesse na relevância de um contorno. Mantenha as habilidades humanas vivas. A imagem desenhada à mão é milagrosa. O fato de você poder manifestar algo de algum lugar fisicamente inacessível e dar-lhe vida torna-o milagroso. O fato de uma série complexa de marcas poder compor uma poesia visual que afeta pessoas de maneiras diferentes é profundo, mágico, um privilégio que não devemos descartar ou desvalorizar…

E por fim, seja fiel ao seu trabalho. É essencial se ter uma linguagem acessível e envolvente para sua alma poder sonhar.

Bela história. Belíssima. E mais bela ainda a obra. Que demorou para vir à tona sim. Mas que, apesar de Londres (cuja bruma insiste em esconder artistas expoentes em seu tempo), está aos poucos sendo revelada no Instagram.

Sigam o Simon:
@s.p.seddon

Na rede social e na coragem de se revelar. Seja cedo, seja tarde! Porque o tarde não existe entre os deuses da arte.