Lucía, com acento no i e sotaque de Barcelona

Texto de Adriana Nolasco


17 horas. 14 graus em Lisboa. 28 em Angra dos Reis. 16 em Sevilha. 9 em Agerola. 23 em Montevidéo. 14 em Veneza. 5 em Nova York. O que Lucía, com acento no i e sotaque de Barcelona, mais gostava de fazer era viajar. Qualquer modalidade de viagem. A pé, de ônibus, barco, avião, espiritual, de ácido, bicicleta, interestadual, extraterrestre, pra dentro, pra fora. Por isso também amava aeroportos. A ponto de ir trabalhar lá, num dos piores empregos que tivera na vida: vendedora de freeshop, nos dias em que não trabalhava como garçonete na tasca ou no bistrô. Adorava ver os rostos, um pra cada pessoa no mundo, “e são muitos bilhões delas!”, se assombrava. O aeroporto contribuía com esse sentimento e alimentava ainda mais outro: o deslumbre pelo movimento. Lucía quase nunca parava e gostava de ver tudo se mexer. Árvores, carros, lesmas, até as pedras tinham movimento. Estava sempre entre um ponto e outro e nesse estado se mantinha até que parava e constatava que a viagem tinha finalmente acontecido. De a para b e depois de b para a: era na volta, precisamente em a, que sentia a onda bater. Por causa disso e de muitas outras coisas, Lucía foi se tornando uma fanática por determinados aplicativos, principalmente os de localização, mapas, meteorologia e hospedagem. Assim como os de viagens de forma geral. Uma necessidade de posicionamento, de construir em 3D tudo aquilo que pensava desconhecer. Cruzava dados e distâncias como ninguém. Latitudes, ruas, estados de espírito, metros quadrados, sotaques, direções do vento, tudo servia ao seu propósito. Porque ir para ela era simplesmente estar lá. Suspensa até o limite, pendurada entre o Mediterrâneo, o metrô, Berlim, a tasca, o aeroporto, Positano, a bicicleta, Lisboa à noite. Em longos passeios a pé pela street. Aeroportos são lugares de passagem, deveria se lembrar. Torre de Babel. Sempre gostou das cidades que tem lâmpadas amarelas. Esse foi um dos critérios da escolha do seu pouso, a base a partir da qual tudo percorria. Lucía, com acento no i e sotaque de Barcelona, repetia sempre essa frase pra que nunca se esquecessem de pronunciar seu nome corretamente. Também não conseguia não reparar em como aeromoças e comissários tinham uma pele de papel, mas admirava sua qualidade de sorrir e puxar malas com rodinhas. Consultou o aplicativo de metereologia. Em Lisboa fazia agora 16 graus, entardecia. Naquele dia Lucía fotografou as próprias mãos porque ficou boa da alergia na pele do dedo mindinho da mão direita assim: sem saber de nada. Gostava de fotografar, quase tudo. E nunca mostrar pra ninguém. Era uma prova pra si mesma de que tinha vivido aquilo, de que esteve ali. Porque senão achava muitas vezes que estava louca. Mas só estava sozinha.

Fotos de Adriana Nolasco