Maldito seja Vênus

Texto de Toinho Castro


Imagem do planeta Venus

Os Marcianos estão chegando! Quase os vi baterem à minha porta de tão anunciados. Tudo sobre Marte, o planeta vermelho! Foram filmes, livros, teorias da conspiração, homens verdes para lá e para cá, canais, Ray Bradbury, uma saturação desse tal de Elon Musk, seriezinha na Netflix, para esses cientistas desprovidos e sentimento ou memória afetiva descobrirem vida em Vênus! Pelo amor de Deus, quanta decepção nesse mundo que se desmancha aos meus olhos. Olhe bem pra mim… uma vida dedicada a Marte. Quando criança, lá na Imbiribeira, olhava para o céu, procurando entre as estrelas a minha pequena joia vermelha. Alguém me disse, ou li em algum lugar, que os planetas eram aquelas estrelas cujo brilho era fixo, não cintilava como as estrelas de verdade. Isso porque eles não emitiam luz, mas refletiam a luz do Sol, como a lua. O brilho das estrelas cintilava por causa da distância que precisava viajar para chegar até nós. Até hoje não sei se isso é verdade, porque eu prefiro que seja., então está entre as coisas que eu não pesquiso. Veja bem, que quando Vênus se insinuava no céu, a Estrelas D’álva, Vésper, todos paqueravam com ela. Todos a chamavam de estrela, como se isso fosse um valor agregado. E eu dizia: É um planeta… É somente Vênus, o planeta. Mas nada disso importava porque eu tinha o meu amor secreto. Marte!

Eu tinha esse amigo, Biano. Digo tinha porque nunca mais o vi, mas ainda o tenho. Biano era todo enxerido pro lado de Vênus. Amava… Ele me dizia Toinho, se tiver vida no sistema solar fora da Terra, é em Vênus. Escreve aí o que eu to te dizendo. Travamos inúteis e terríveis batalhas de argumentos e paixões. Marte era o deus da guerra e eu um soldado pronto a defendê-lo. Já Vênus, era o portador da paz. O oposto complementar. Coexistiam no céu das noites do Recife. Coexistiam em mim e Biano, com Terra entre eles, mediando suas passagens, suas órbitas e alinhamentos possíveis. Minhas únicas pazes com Vênus era a suite Os planetas, em que discorre musicalmente sobre nossos companheiros de sistema solar, excetuando Plutão, que ainda não havia sido descoberto, e a própria Terra. Marte, como eu bem achava adequado, abria triunfante a obra, bélico, marcial, estranho, sombrio. Vênus era o segundo movimento. Vênus, o portador da paz. E o fato é que ainda hoje éo meu movimento preferido da obra do compositor inglês. Escuto Marte apressado, ansioso, porque tenho que escutar. Porque teno esse compromisso com meu companheiro celeste. Mas escuto esperando Vênus, como nossos vizinhos corriam para rua, para ver Vésper nascer, naquela hora estranha, entre o dia e a noite, em que os morcegos revoavam sobre a rua Pampulha. Sempre preferi escutar a versão do músico e compositor japonês, pioneiro da música eletrônica, Isao Tomita. Dizem que a filha de Holst não ficou feliz com a versão de Tomita para a obra do seu pai. Mas felicidade é uma coisa que nem sempre a gente tem.

Mas quando Holst saía da vitrola, Marte reinava. Li tudo que você pode imaginar. Literatura, reportagens, artigos jornalísticos. Vi filmes e desenhos animados, estudei mapas e centenas de fotografias e desenhos do nosso vizinho na quarta órbita a partir do Sol. Fascinado que eu estava. Porque imaginava que a qualquer momento um sinal de vida surgiria. Acompanhei todos os movimentos dos olhos voltados para Marte, as sondas, os robôs a circular pelos seus ermos, na beirada de suas crateras, cobertos de uma fina poeira vermelha, perscrutando, e talvez se perguntando, no íntimo dos seus chips “Onde andará a vida nesse planeta?!”, enquanto apontava suas lentes para o cume distante do massivo Monte Olimpo. Tudo em vão… os rovers a vagar pelos mares, a escutar nada que não seja o próprio ruído, comunicando-se apenas com a Terra. Mesmo o lendário rosto marciano, esculpido na latitude 40°75′ norte e longitude 9°46′ oeste, revelou-se um engano da baixa resolução da Viking 1.

Enquanto isso Vênus dormia sob sua densa camada de nuvens, responsável pela alta capacidade de reflexão da luz solar, que resultava no objeto mais brilhante no nosso céu noturno, depois da Lua. Uma das sondas Venera, lançada pela União Soviética, foi o primeiro objeto a feito pelo homem a pousar em outro planeta e tirar uma foto. Nesse dia eu devia ter desconfiado que o futuro não estava em Marte, mas eu tinha apenas dez anos e Marte era o único brilho vermelho no céu. Fui levado pelo seu canto noturno. E nem Biano, com sua amizade, foi capaz de me arrebatar pra Vênus. Mesmo Holst não foi suficiente, apesar de neste instante eu escuto a versão de Tomita para Venus – The bringer of peace.

Hoje li que descobriram por lá um gás que está diretamente associado à vida. E isso é uma grande pista. Pode ser um grande engano também, mas na manhã de hoje todos já esperavam ansiosos pela Etrela D’álva no fim da tarde, já imaginando os seres flutuantes e silenciosos em sua atmosfera, com os corpos cobertos pela mesma luminosidade que enfeita os peixes nas profundezas do nossos oceanos. Seres pacíficos, como talvez tenha imaginado Holst. Seres que não precisaram construir cidades ou automóveis, que não ergueram estátuas e que são carregados aleatoriamente pelos poderosos ventos que varrem o planeta. E por causa disso, todos os encontros se dão ao acaso. Vênus é isso, um planeta de encontros ao acaso. Parece-me, pois, que já sou quase um convertido. Pela janela olho o céu nublado mais uma vez, sabendo que não verei Marte.

De repente sou assombrado pelo fato irreversível de que Vênus é o planeta regente do meu signo, Libra. Digo para mim mesmo que não acredito em signo, mas apenas para acreditar no que digo. Talvez eu tenha que ter trilhado esse longo caminho de negação até Vênus, até que ele me receba sob seu denso manto de nuvens de CO2 e ácido sulfúrico, onde alguma poesia deve haver.

Maldito seja Vênus!