Humberto, Soparia e Garagem: três gerações de rock

Texto de Pedro Siqueira


Para uma fatia considerável de jovens sedentos por pelas novidades do rock mundial, nos anos 1970 e 1980, o endereço do hippie Humberto Brito, na Rua da Matriz, região central do Recife, tornou-se referência na cidade, em se tratando de coletividade e convergência de tribos. Lá, conviviam em harmonia tanto fãs do rock pesado de Black Sabbath como admiradores da poesia melancólica dos Smiths. A importância do espaço e de seu dono, falecido em 2014, aos 65 anos, é reconhecida até hoje por figuras-chave da cena musical que se formava nos anos 1990.

“No início dos anos 1980, eu ia direto na casa de Humberto, junto a Fred ZeroQuatro. Foi lá que descobrimos muita coisa que veio a ter influência em nosso trabalho. Compramos discos de Sex Pistols, Patti Smith… O primeiro álbum de David Bowie que tive foi comprado em Humberto”, relembra Renato L., ex-secretário de Cultura do Estado, e um dos cabeças da cena Mangue.

A “casa” ou “sebo de Humberto”, como ficou informalmente conhecida, era, de fato, a residência do lojista, que também comercializava alimentos orgânicos, além dos discos, em sua maioria de difícil acesso na época. “O esquema de distribuição das gravadoras era muito diferente. Podia demorar anos até que um disco mais alternativo chegasse às lojas, especialmente no Recife. Humberto acabava trazendo muito material do Rio, de São Paulo, ou até de fora”, conta Renato L.

Fred ZeroQuatro, vocalista da banda Mundo Livre S.A. e um dos autores do manifesto Caranguejos com Cérebro, espécie de carta de intenções da cena mangue, credita à casa de Humberto suas primeiras incursões no movimento punk rock, cujo lema, “faça você mesmo”, tornou-se influência tanto para a formação da banda, em 1984, quanto para a forma como os “mangueboys” organizavam seus eventos. “Mais do que o som, éramos interessados na estética punk, de ser um movimento articulado, bem planejado”, lembra ZeroQuatro.

Mesmo que, sonoramente, a casa de Humberto pouco tenha a ver com o estilo musical das bandas recifenses da cena mangue, o ponto foi um importante agregador de diferentes culturas, contando, também, com o fator do “boca-a-boca”, que gerou um nicho relativamente grande de clientes. Era comum, também, pessoas aparecem apenas para conversar, conhecer gente nova, ou simplesmente participar das sessões de audição promovidas por Humberto.

Rua da Matriz, 97 – Foto de Wilfred Gadêlha
Humberto Brito – Foto do acervo de Levi Cerqueira.

Até sua morte, Humberto Brito nunca deixou, oficialmente, de vender seus discos, mas, já nos anos 1990, com o avanço do CD sobre os discos de vinil, a rotatividade em sua loja foi minguando, curiosamente, ao passo em que o Movimento Mangue ascendia, e seus representantes também teriam um point para chamar de seu.

Soparia do Pina

Se cidades com fortes movimentos musicais como Seattle, Los Angeles e Nova York tiveram seus próprios bares, por onde passou boa parte das bandas que viriam a se destacar em seus meios, no Recife, havia a Soparia.

Inaugurada em 1991, pelo produtor e agitador cultural Roger de Renor, o espaço foi palco de evolução de bandas como Cordel do Fogo Encantado, Eddie, Mestre Ambrósio, Querosene Jacaré e os então já estabelecidos Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre SA.

“A Soparia tinha a questão de ser muito eclética. Tanto fazia, em uma noite, ter um show de punk rock, como, na outra, um de música eletrônica ou até forró e maracatu, cultura popular”, afirma Renato L. O espaço funcionou até 1999, na Avenida Herculano Bandeira, bairro do Pina.

Foto: Roger de Renor/Arquivo pessoal

“A Soparia, para mim, unia o útil ao agradável. Eu sempre gostei de juntar meus amigos para conversar, beber, ouvir música. Fazia festas e, então, decidi que podia ter meu próprio espaço”, conta Roger de Renor. 

Amigo de Chico Science, Fred ZeroQuatro e figura-chave da cena mangue, Renor é, talvez, a maior referência pernambucana, em se tratando de projetos variados que agregam todos os tipos de som, desde o rock pesado até o maracatu e a ciranda, como se orgulha de citar, enquanto relembra artistas que passaram pelo palco da Soparia. 

“Eu penso que quase todas as bandas que estavam surgindo na cena tocaram ali. Todo mundo se encontrava. Se tinha um festival, por exemplo, como o Abril Pro Rock, o público ia depois para a Soparia, e os artistas também. Lembro uma vez que os Paralamas do Sucesso tocaram no festival e depois seguiram para lá”, diz.

Como o nome sugere, a Soparia era, de fato, um local que servia sopas, mas as atrações iam além da pura gastronomia. O salão do local, espaço reservado para as apresentações ao vivo, virou referência para boa parte da juventude antenada da época. A aventura, no entanto, durou pouco e, em menos de dez anos, a Soparia encerrou as atividades, em um momento de efervescência da região no Pina, que passou a receber outros bares.

“Depois de mim, outras pessoas começaram a empreender ali no local. Criou-se um mercado, mas isso não existia. Posso dizer que o movimento que nasceu foi por causa da Soparia. Hoje virou negócio, chama-se Polo Pina. Naquele momento percebi que já não me encaixava mais naquilo”, pontua Roger.

Sempre ativo, o agitador cultural leva o espírito agregador que fez parte de sua fama para iniciativas como o programa de TV Sopa Diária e o projeto itinerante Som na Rural.

Cerveja e punk no Garagem

Com o fechamento da Soparia, a noite recifense ainda teria um respiro de inventividade com o Garagem, bar localizado no bairro das Graças, Zona Norte do Recife. Assim como seu predecessor, o espaço, famoso na cidade como “o único lugar do Recife em que era possível tomar cerveja até o dia raiar”, também serviu de reduto para a juventude underground recifense, mas voltado para as raízes do punk e do rock.

“O Garagem era o lugar que todo mundo ia. Gente de todo tipo passava lá depois que tivesse algum show rolando, e sempre ouvia bons sons. Até mesmo artistas famosos que vinham tocar no Recife acabavam tocando lá”, lembra Guilherme Moura, curador do portal Recife Rock. “Lembro de uma vez que Wander Wildner (cantor gaúcho, ícone do ‘punk brega’) tocou lá de graça, e não tinha sido anunciado direito, foi tudo no boca-a-boca, acabou lotando o espaço.”

“Nessa época, havia uma preocupação maior com a programação musical, tinha sempre shows. Mas era complicado. O Garagem nunca foi muito popular na vizinhança, era algo muito marginal. Não era incomum aparecer polícia durante os shows, revistando todo mundo. Isso acabava afastando o pessoal”, lamenta Guilherme.

O local, na verdade, iniciou as atividades ainda nos anos 1990, sob o nome Galletus e curadoria de Evandro Sena, hoje proprietário do espaço Iraq, na Boa Vista. “O Garagem se beneficiou muito desse espírito quase punk mesmo, de ser meio improvisado, você nunca sabia o que ia acontecer”, relembra Evandro.

Ao contrário da Soparia, no entanto, o Garagem teve um fim mais melancólico, sendo demolido em 2009, oficialmente, pela falta de alvará de funcionamento. Durante os anos de maior atividade, o espaço foi gerido pelo folclórico “Nilson”, e viu surgirem bandas como The Playboys, Mamelungos e Mellotrons, que, apesar de nunca terem cruzado a barreira do sucesso mainstream, foram referências na cena alternativa daquela geração.

Hoje, com o Iraq, na Boa Vista, Evandro também mantém vivo o espírito underground do Garagem. “Eu penso que é um tipo de público muito parecido. Quem ia ao Garagem também vai, hoje, ao Iraq. E aí sempre tem alguém que traz um amigo novo que curte, se interessa, e por aí vai ampliando”, comenta. 

É possível afirmar que, de certa forma, tanto a casa de Humberto, como a Soparia e o Garagem foram vítimas não só de fatores como especulação imobiliária, mas também de uma mudança nos padrões de consumo do público, talvez até mesmo em escala global. Mas mesmo em locais de nicho, a cena pernambucana, aos poucos, mostra sinais de vida.

PS. Não encontramos os créditos para as fotos de Humberto Brito e seu sebo. Se alguém souber o autor, por favor nos informar!