O rei nu

Vejo sempre a Revista Kuruma’tá como uma encruzilhada, por onde as pessoas passam, param, se encontram, conversam… Nesses tempos de pandemia e quarentena, pensamos a Kuruma’tá como uma janela, um ponto de encontro e uma perspectiva para o olhar o mundo. E eis que entre os que passam e deixam suas palavras, chega-nos a Tássia Hallais Veríssimo, com uma certeira observação dos dias que vivemos.

Bem-vinda, Tássia!

Texto de Tássia Veríssimo


Arte de Toinho Castro a partir de ilustração original

Quando eu era criança entrei numa livraria de um shopping na Barra da Tijuca – aquele bairro que fica no Rio de Janeiro, mas que jura que na verdade é uma parte perdida de Miami. Na época a gente morava em Campo Grande, bairro suburbano que não tinha nem filial do McDonald´s que dirá uma loja lotada de contos infantis. Ir à Barra, portanto, era um evento.

Lembro que, naquele espaço mágico, dentre tantos livros, peguei para ler um que contava uma história inusitada. Um rei que, enganado por um trambiqueiro, comprava uma suposta peça de roupa mágica que só os inteligentes podiam ver. Na verdade, o rei havia gastado o dinheiro do contribuinte por coisa alguma. Estava nu a desfilar em meio aos seus súditos, que para não despertarem o aparato repressivo do estado fingiam não notar a bunda mole do soberano. O rei também se via nu, mas para não passar atestado de burro, fingia que não sentia a vergonha tomar conta de si.

A loucura só parou quando alguém teve a coragem de falar o óbvio: o rei estava nu!

O Brasil da pandemia é praticamente uma adaptação ao vivo – e em cores de desespero – desse conto. Elegemos um rei que se recusa a aceitar o óbvio e que está rodeado por um séquito que insiste em um universo paralelo no qual remédio para Malária cura de chifre a dor de dente, passando por pneumonia.

No fundo, sabem que o rei está nu. Mas estão há tanto tempo fingindo ver roupas que não existem que não veem como sair dessa sem admitir a vergonha de ter caído no conto vigário. E quem fala as verdades que precisam ser ditas é visto como inimigo. Natural, afinal quem quer ser confrontado com seus medos mais profundos e com a vergonha de ter criado um mito a partir do barro?

O Brasil está – mais do que sempre – divido entre os que enxergam a nudez de um governo que serve apenas ao interesse daquele 1% que detém o capital e os que parecem estar dispostos a se sacrificar para não admitir a própria nudez, pois já se fundiram de tal modo ao rei que não se sentem seguros sem o guia. Tal qual uma criança que se perde numa loja de departamentos.

Mas, uma hora a nudez aparece. Ela sempre aparece. É impossível de esconder.

A nudez aparece nos corpos internados, nos corpos em busca de cura, nos corpos com fome, nos corpos com medo. Estamos todos com medo, mesmo os que fingem ver roupas de ouro no mito.

Aliás, sempre bom lembrar que mitos não existem, tal qual as roupas do rei nu.

E o livro? Meu pai não comprou. Mas, talvez mesmo por isso, nunca o esqueci.


8 comentários

  1. Adorei a forma de como a autora a partir de suas lembranças fez um comparativo da nossa realidade com uma alusão literária da mesma. Muito bom!

  2. Desculpe filha. Se não comprei o livro foi porque, na época, a Barra da Tijuca talvez estivesse tão fora de meu alcance como se fora a referida Miami. Parabéns pelo texto.

  3. Sempre me ocorre a lembrança dessa filosófica obra literária qdo faço os meus reais e atuais comparativos… (Bravos!)

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