Anjos de Espada

Houve esse tempo em que para dizer algo a alguém você primeiro dizia esse algo a outro alguém, que dizia a outro e isso chegava ao moço no navio, que atravessava o Atlântico, o Pacífico, o estreito de Ormuz, para que ali, outro alguém escutasse e passasse adiante, numa cadeia sucessiva de alguéns até que chegasse ao destinatário. Hoje basta um Enter no teclado para que eu saiba a mensagem, basta um e-mail para que chegue assim um poema, lá de Coimbra, falando de anjos. Quem diria? — Toinho Castro , ao receber o poema de Lu Lessa Ventarola.

Poema de Lu Lessa Ventarola


Partem-se muitos.
Os mil demônios ficam.
Sobrevoam
a noite dos meus dias
à espera do banquete que farão
com todas as malditas palavras.
Estas que, sem terem para onde ir,
colaram-se à minha carne.
 
Tenho dúvidas ainda se me entregarei facilmente.
Gostaria mesmo de, antes do inevitável,
comer eu própria uma centena deles.
Demônios.
Assá-los em fogo com suas asas abertas.
Colocar mel em suas carnes duras e
lambuzar-me chupando seus ossos.
 
À mesa alguns anjos diriam amém.
Outros apiedariam-se dos irmãos caídos.
Mas os meus melhores amigos – os anjos de espada -,
ah estes! comeriam comigo o repasto.
 
Depois poderia subir o cadafalso feito uma antonieta.
 
Ou, talvez, no momento da entrega,
apenas chore feito cordeiro a ser imolado,
acreditando ver passarinhos a
sobrevoar
o dia das minhas noites.
 
 
Coimbra, 02 de março de 2020
Foto de Catarina Carvalho