João lê Trevisan, leitor de Curitiba

Texto de Nonato Gurgel


Para o poeta e prof. Francisco Ivan

Em tempos de isolamento, nada mais pertinente do que falar de um autor que vive recluso, isolado, a metáfora do isolamento como criação e resistência: Dalton Trevisan, o vampiro de Curitiba. Lido como um dos principais escritores do nosso cânone moderno, detentor do prêmio Camões, ele completa 95 anos no próximo mês de Junho e lê o escritor como um ‘vampiro de almas’.

Sua obra se destaca pela forte presença de, dentre outros, duas formas culturais: o conto e a cidade de Curitiba. Seu texto breve, escrita curta é, às vezes, incômoda. Com cerca de 50 títulos publicados, sua bibliografia desconstrói a forma-conto e o texto da cidade-clichê, a ‘cidade sorriso’ criada pela mídia, pelo designer, a Curitiba ‘toda de acrílico azul para turista ver’.

Esse autor que desconstrói o conto e a cidade nos chega através do belo ensaio Trevisan, leitor de Curitiba (2019), de João Batista de Morais Neto. Munido de procedimentos como a paródia, a ironia, o intertexto e o corte, esse Dalton leitor da cidade tem forte porção barthesiana, principalmente do Barthes póstumo de O rumor da língua, livro que acentua as questões da leitura, autoria e escrita.

Desde sua inscrição no contexto contracultural das poéticas alternativas dos anos 80, no Rio Grande do Norte, o poeta e prof. João Batista é um dos nomes mais representativos das letras contemporâneas. Autor de Temporada de Ingênios (1980), Itajubá (2007), O veneno do Silêncio (2010) e Bissexto (2019), dentre outros, João é um escritor de ouvido atento aos rumores da língua e aos barulhos do contexto. Sua obra, ‘atravessada pela leitura dos Campos’, destaca-se pela construção de uma escrita concisa, enxuta, linkada num ‘saber com sabor’.

Essa concisão dialoga de forma interdisciplinar com saberes de diferentes épocas, e está presente em Trevisan, leitor de Curitiba (Sebo Vermelho). O texto foi reescrito a partir da dissertação de mestrado defendida pelo autor na UFBA. Nas orelhas assinadas pela professora Cellina Muniz, João é lido como um ‘vampiro às margens do Potengi’.

O livro é curto, denso, mas tem formato simples dividido em 3 partes: ‘Introdução’, ‘Uma antipastoral trevisaniana’ e ‘A cidade como texto’. Essa cartografia sugerida pelo sumário põe em evidência os ‘mitos provincianos do mundo suburbano’, recortados pelo vampiro desde o seu 1º livro Novelas nada exemplares (1959). Além dos mitos da província, o texto de João acentua o apreço do autor curitibano pelos signos e linguagens das classes média e baixa, lendo no autor uma ‘poética da elipse’.

Para compor ‘Uma antipastoral trevisaniana’, João tece uma polifonia com as vozes de Deleuze, Marshall Berman, Leyla Perrone-Moisés, Berta Waldman, Jose Castello, Sanches Neto e Rosse Marye Bernardi. Junto a esses críticos-leitores, destaca-se a voz do poeta curitibano Paulo Leminski, que ratifica a leitura de Trevisan, em torno da cidade tematizada por ambos. Diz o bandido que sabia grego e latim: ‘Curitiba é a cidade dos desejos inconfessáveis. Uma cidade onde a sexualidade é reprimida pela mística imigrante do trabalho.’

Trevisan, leitor de Curitiba tem o seu apogeu na parte final, ‘A cidade como texto’. Nela esplende a porção semiótica do Roland Barthes, ensinando que ‘o texto é o próprio aflorar da língua’. De ouvido na língua e no espaço urbano, João afirma que ‘a cidade é, simultaneamente, conceito e imagem, forma e conteúdo’.

Nessa parte final, um belo recorte comparativo dialoga com os olhares citadinos de Bandeira, Drummond e Pessoa. Além disso, João registra o olhar ‘lírico-dessacralizador’ de Trevisan, e demonstra como ele distorce, para o leitor comum, a cidade de Curitiba, inscrevendo não a cidade histórica, ‘mas a Curitiba que é a sua própria escritura, uma cidade ideal que, para existir, precisa ser evocada’.

Com este livro, cuja economia verbal opera com as mesmas ‘armas’ do vampiro-tema, João Batista cria ‘uma poética da recusa’ que nos ajudar a ler, não apenas Trevisan e Curitiba, mas a sua própria ensaística.