Uma lagoa escura, arrodeada de areia branca

Texto de Toinho Castro


Para Zidi Brandão

O governo da Bahia quer construir uma estação de esgoto onde? Nas margens da Lagoa do Abaeté. É isso mesmo que você leu… buscar alternativas, não. Vamos lá estragar, acabar, mais um patrimônio natural. Não sou da Bahia, não nasci em Salvador, e nas duas únicas vezes em que estive lá não tive oportunidade de visitar a Lagoa do Abaeté. Mas cresci à margem dela, na areia branca, desde que escutei, pela primeira vez, It’s a long way, de Caetano Veloso, no seu álbum Transa, gravado no exílio em Londres, em 1971, e lançado no Brasil no ano seguinte. Nela, Caetano evoca os versos de Dorival Caymmi, da canção A lenda do Abaeté, de 1959. No Abaeté tem uma lagoa escura / Arrodeada de areia branca… No contexto do disco, do exílio, esses versos pareciam-me mais uma fantasmagoria. Talvez as águas escuras do Abaeté assombrassem mesmo Caetano, enquanto vagava pelas ruas frias de Londres. Para mim, na rua Pampulha (Nome de outra lagoa…), lá na Imbiribeira, no velho Recife, esses versos eram como uma pista, a dica secreta de um tesouro escondido. Como se me fossem ditos no meio da noite.

Segui essa pista e ao meu imaginário adicionei essa mapa, esse caminho, esse long, long, long, long, long way até lá. Sentei na areia branca, mirando a escuridão das águas numa noite de lua prateada. Parte de mim senta-se ainda hoje nessa areia, nessa noite de luar que perdura. Ainda há um mistério e uma revelação por vir. Há algo de visagem, que com Caymmi e sua Lenda do Abaeté, se aprofunda. Ele asobia no meio da canção. É o vento na mata, nas árvores? É o vento cisando sobre as águas? Vamo chamar o vento.

O pescador
Deixa que seu filhinho
Tome jangada
Faça o que quisé
Mas dá pancada se o seu filhinho brinca
Perto da Lagoa do Abaeté
Do Abaeté

A noite tá que é um dia
Diz alguém olhando a lua
Pela praia as criancinhas
Brincam à luz do luar

O luar prateia tudo
Coqueiral, areia e mar
A gente imagina quanto a lagoa linda é

Sou cria afetiva da Lagoa do Abaeté tanto quanto do Capibaribe ou da foz do Potengi. São os barulhos de água que escuto dentro de mim.


Assusta-me e revolta-me imaginar que um grupo de pessoas senta-se às margem de sua burocracia predatória e decidem fazem uma estação elevatória de esgoto na Lagoa do Abaeté. Você não fica com o estômago revirado? Daqui de longe, de onde estou, envio meu apoio à luta daqueles que, em Salvador, defendem a lagoa do Abaeté da ação dos destruidores de mundos. Com isso defendem o vento, os barulhos estranhos na mata, as lendas remotas que as águas escuras escondem, os reflexos prateados da lua e, em última instância, as pessoas. E as divindades.


Foto de destaque: Flickr Câmare de Salvador – Modificada a partir de foto original, de acordo com os termos da licença Attribution-NonCommercial-ShareAlike 2.0 Generic (CC BY-NC-SA 2.0)