Jandaíra quer ficar – Parte 1

Uma fábula estranha de Toinho Castro


Jandaíra corria em sua bicicleta pelas ruas vazias do Recife. No pequeno aparelho de MP3 tocava em looping a musiquinha do momento, com seu infatigável refrão: Tá todo mundo morto, tá todo mundo vivo. Ela só ria da canção. Você pode imaginar Jandaíra como uma adolescente, com sua bicicleta e sua juventude cristalina. Mas Jandaíra tinha 34 anos, e uma bicicleta que a carregava pra lá e pra cá, numa cidade silenciosa e perigosa. Mas ela não ligava. Jandaíra havia perdido tudo. Jandaíra não tinha ninguém. Seus pais, a maior parte absoluta das suas amizades, desafetos, professores, vizinhos e estranhos, havia desaparecido. Tá todo mundo morto . Mas Jandaíra trocava ideias com os mais chegados dessa turma com alguma frequência, porque tá todo mundo vivo; como dizia a canção.

O telefone de Jandaíra raramente tocava. Mas naquele fim de tarde, depois que ela largou a bicicleta no corredor do décimo andar do pequeno prédio, espremido entre dois hotéis, em que vivia, ela escutou o velho e familiar toque. Demorou a reagir com o que deveria ser o gesto automático de atender. Por fim, disse:

— Oi! Diga lá…
(pausa)
— Sim, sim… eu tô ligada. Tô sabendo! Quem não tá, né?!
(pausa)
— Sim, imaginei que você ia. Eu entendo. Aliás, nunca disse que você não devia…
(pausa)
— Pois é… dizer que eu apoio é excessivo, né. Mas é sua vida, né. Não vou te dizer o que fazer e, honestamente, espero o mesmo de você…
(pausa)
— Não, não tô chateada… desde que você não me chateie rsrsrs. Mas, cara, de boa, acabei de chegar em casa. (pausa) Sim, tava pedalando… enfim. preciso me arrumar aqui, tomar um banho. Essas coisas que gente faz.
(pausa)
— Não!!! Não tô ironizando, não. Só perturbando um pouco rsrsrs.
— Ok… Ok… Mais tarde eu ligo. Prometo.

Naturalmente era a conversa. A conversa que tem perseguido os dias e noite de Jandaíra. “Foda-se! Não quero ter essa conversa!”, pensou Jandaíra deixando a roupa no chão e se isolando do mundo sob a ducha de água quente que o chuveiro despejava sobre seus cabelos cacheados e sua pele escura, como a de sua mãinha, de sua avó e de gerações dos seus, até ela. Até ali, aquele momento na história, depois de tantas tormentas e travessias, tantos porões fechados e céus abertos sobre suas cabeças. Anos, décadas, séculos sobrepostos e ainda tinha gente querendo dizer a ela o que fazer, o que era melhor pra ela e mesmo decidir por ela… e da pior maneira, como se estivessem explicando ela pra ela mesma. Como se ela não soubesse quem era. Ali, embaixo do chuveiro, Jandaíra prometeu a si mesma que não ligaria mais tarde. Falou pra si mesma que as pessoas que restavam já estavam mesmo desistindo dela, do seu caso perdido. Só lamentavam… Ela mesma só queria pedalar e se abastecer do que restara aos pouco que resolveram ficar.

— Foda-se! — Berrou Jandaíra de dentro de sim mesma, espalhando água com a força do ar que saía de sua boca. Ninguém ia ouvir mesmo.

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