+ Tays Melo na Kuruma’tá

Crônica e poemas de Tays Melo


Um brinde aos simplórios ludibriados!

Ah, a ingratidão! Suspiro ao pensar. Um suspiro exausto, com olhos baixos, semblante perdido, desidratado e melancólico.
Ah, a ingratidão… Esta coisa abstrata que embora esteja no outro é em nós que causa tanta dor.

Há corações que não batem, mas não matam seu dono. O deixam perambular, mortos-vivos, incapazes de perceber a diferença entre agravo e doação. Corações secos, continuam lá, abrigando coágulos gélidos. E o seu frio é soprado sobre as almas quentes para rasgar seus mantos calmosos, cobertores dos desabrigados, desprotegidos, atirados à poça de cuspe dos ingratos. Às vezes é difícil ser alma quente, cobertor dos desalmados.

Mas hoje, eu já não quero esclarecer nada a ninguém. Não quero falar com ninguém. Quero apenas descansar. Hoje eu só quero ficar quieta e quem sabe chorar. Choramingando uma lágrima por vez, escorrendo lenta e morna pela face como se, na verdade, não quisesse cair. Como se sentisse que quem a fez derramar, não merece que ela caia e cumpra o propósito da cura de uma doença que não está em mim.

Ah, a ingratidão… Como arranha! Como fere! Ainda que não tenha nascido em minha ação, de um olhar meu, de meu desamor, nasceu de desatenção minha. Talvez por isso me sugue, tente me esvaziar, quando me deixa triste, solitária e sem acreditar. Porque a ingratidão sempre vem de onde não se espera, no risco, na entrega, simplesmente por doação, por mera razão de com o outro se importar.

 


Um café, por favor.

Hoje provei desse café amargo.
Despejei naquela xícara verde-abacate
E o vi cair lentamente, melódico,
não expresso, expressivo, ardente.

O som debulhando borbulhoso
No centro da queda negra
Que formou o primeiro gole
armazenado ao fundo.
Sinuosa e emergente a fumaça
Trazendo o aroma da melancolia.

Não consegui adoçá-lo.
É cortante, imerso no amargor
Que precisa ser alcançado
Desse café mal coado
Que não desce nem cede
E que me favorece travando à garganta.

Desse café, desce café
Dá esperança ameaçada de morte
Companheiro noturno das agonias
Do operário que pesca e não dorme.

Café que acompanha a ilusão
Dos poetas e estudantes contumazes.
Esse café de 29, de sacas incendiadas,
Atiradas ao mar pela esganação do mercado
Oferecido aqueles com quem se quer fazer as pazes.

Esse café
Da alma marcada que sangra na sombra.
Degusto todo dia, alargando as sendas
Com linhas costuras, retalhos e emendas
No abismo talhado que me assombra.

Do aroma desce sabor, desce saber
É forte, é quente, dói e sacia.
Ferve, se eleva, se derrama
Espalha seu pó, faísca na chama,
Aquece o sol ainda que saído
De um pote de água fria.

 


A mesa do fascismo

De orgulho em estilhaços
Nos becos alguém grita, implora…
O estômago colado aos espinhaços
Da criança raquítica que chora.

Exala-se nas esquinas da estupidez
A cobiça do helminto esganado
Nos monturos chafurdados do burguês
Em eflúvio se arvora o escorralho.

De suas almas,
E do choro
Do desespero,
E do chorume
Avulta-se o espectro derradeiro
Fruta podre
E estrume.

Ruas frias, morros altos, becos úmidos
Cachorro, mulher, criança, homem
Arranham a panela com olhos túmidos
Em ânimos trapaceados pela fome.

 


Gatilho

É fácil quando se pesa
o que é mais importante
E não se menospreza
o peso de elefante
que esmaga a consciência
com castigos torturantes.

Nestas noites abrasivas
Largue-se peso inocular
na consciência puida
de quem não soube validar
a fortuna auferida
que todos sonham alcançar.

É gratificante ser
fiel a quem se deleitou
De suas alegrias e agruras
Engolindo sal do dissabor
Ao teu lado nas torturas
Tonturas das doçuras do amor.

Não se dá constrangimento
A quem já sabe usar o não
Ao que só causa sofrimento
Banhos frios de aflição
Mágoa e arrependimento
Não se lava com sabão.

Quem quer jogar ao nada
das ruelas espremidas
de uma vida tão suada
o amor de sua vida?

Volta para tua casa
Abraça os teus filhos
Beija a boca da pessoa
Que emenda os teus trilhos

Abraça forte como nunca
revela teus sonhos exauridos
Pois ainda dá tempo, meu caro
Não vá puxar este gatilho.

Tays Melo | Areia -PB