Xícaras herdadas | Um conto de Mabelly Venson


Sabedoria de avó é algo sublime. Comecei a perceber isso, na prática, na época em que eu era jovem – tão jovem – que incapaz de compreender os desafios e os ciclos da vida, sofria descomunalmente por situações que fugiam do meu limitado controle, mesmo quando essas, rapidamente se esfarelavam, se deixando levar pelo vento.

Ah, se pudesse voltar no tempo e me embebedar das doses de conhecimento que minha avó, intuitivamente me oferecia e eu, imatura, recusava.

Cai, várias vezes em abismos que eu mesmo cavava. Repertórios infinitos de angústias, dúvidas, reprovações, revoltas. Meu pai, não conheci. Mamãe guardou seu nome, trancado à sete chaves embaixo da língua, levando-o consigo em segredo, para o túmulo antes mesmo que eu tivesse idade suficiente para me revoltar e exigir alguma explicação. De um apartamento bem centro da cidade, fui levada, apenas com uma mala e duas bonecas, para o interior, para viver com Vovó Esmeralda, mãe de minha mãe, aos cinco anos de idade. Uma cirurgia de apêndice, mal feita, tirou Mamãe de nossas vidas.

Eu ainda não tinha 20 anos, mas meu com o coração já era amargo como fel, estilhaçado pela pólvora da angústia, da saudade, da inconformidade. Afogada em autocomiseração e vitimização, diluía minha mísera existência em lágrimas. Via toda minha existência como uma série de sucessivas derrotas.

Em um desses dias enquanto, sentada no chão vermelho da varanda, chorava pela minha cruel existência, Vovó – aquele ser que possuía o aspecto ingênuo e puro de quem já se desatualizou da vida – me fitou enquanto subia os degraus entre o jardim e a casa, se dirigindo até a cozinha. Ela tinha na testa, o aspecto preocupado de quem recorre última estratégia. Em suas mãos enrugadas, um buquê de pequenas flores lilases que espalhavam aquele suave perfume de alfazema.

Minutos depois, enquanto eu já enxugava os olhos com a palma das mãos, Vovó está de volta, agora, caminhando com cuidado, pé ante pé, equilibrando entre as mãos, uma bandeja que trazia de volta, o perfume das alfazemas.

Mal pude acreditar: junto com o perfume, minha avó trazia sobre a bandeja, três peças de seu conjunto de chá. Estranhei, o pequeno bule e as duas xícaras de porcelana antiga, eram as únicas coisas que sobraram de seu enxoval, sendo guardadas, na prateleira mais alta da estante da sala, como tesouro mais valioso que um baú de ouro. Nunca havia presenciado aqueles frágeis recipientes flutuado pela casa. Em meus sonhos de criança, me imaginava passando as tardes bebendo chá com Mamãe. Sorte das xícaras (ou provavelmente minha) que nunca consegui alcançar o auto da prateleira.

Provavelmente o perfume tenha me entorpecido. Fiquei ali parada, assistindo a cena: Vovó pousando, quase que em câmera lenta, a bandeja sobre uma velha mesinha. Em seguida, puxou duas cadeiras, preparando uma pequena festa, o prelúdio de ritual íntimo. Suspirando fundo, esboçando um pequeno sorriso, ela me olhou, fazendo um gesto suave com a mão direita, enquanto a esquerda continuava pousada sobre a mesa.

Vem cá. Sente aqui, meu bem! Vem tomar um chá com sua avó.

Não que me fosse estranho compartilhar a mesa com Vovó – há tantos anos fazemos que somos apenas nós duas, uma fazendo companhia uma para outra. O que estranhei foi o a louça. Durante todos aqueles anos Vovó me preparou, diariamente, uma xícara de chá. Quando criança, logo depois do almoço enquanto nos preparávamos para assistir as notícias do estado – hábito de quem já viveu muitas décadas – ela vinha cozinha, equilibrando dentro de duas xícaras o chá da hortelã colhida de nosso próprio quintal. Segundo ela, era para auxiliar a digestão. Passávamos a meia hora seguinte ali, uma ao lado da outra com olhos colados na televisão e o corpo no sofá de couro sintético. Eu, Vovó e nossas xícaras de chá. Mas, nesse dia em especial, eu estava conhecendo uma nova Vovó. Uma Vovó que parecia ter acabado de ser parida, porém, velha, sábia, alegre, experiente. Dela irradiava um brilho prateado. Seus olhos caídos se tornaram imensos como mar aberto.

Sentadas, nas cadeiras de bambu já desbotadas e carmomidas, Vovó me serviu o chá, não com hortelã, mas de alfazema. Levei a xícara à boca com muito cuidado – Deus me livre de derrubar aquela relíquia – sorvi o primeiro gole lentamente, como quem bebe uma poção mágica. Talvez fosse. Entre o sabor sutil da erva e seu perfume que dançando, adentrava meu corpo através de minhas narinas, ela me contou sobre sua juventude naqueles “outros tempos”. Tempos diferentes de agora, em para a mulher era destinado o serviço doméstico, do terço que era rezado em família todas as noites, de sua infância junto com seus doze irmãos. Pobre Vovó. Foi só naquele dia que soube que ela queria muito estudar, mas só pode frequentar a escola a segunda série primária, sem concluir o ano letivo. Parece que naquela realidade que parecia ser tão distante estudar não era prioridade para as filhas mulheres. Por esse motivo, Vovó aprendeu tudo que pode sobre os cuidados com a terra, o cultivo das plantas, ervas e temperos. Também se aperfeiçoou na costura, que lhe foi ensinada pela sua própria avó em uma máquina de costura movida a manivela – profissão que ainda exerce com maestria, mesmo que a fast fashion tenha colocado as costureiras para escanteio, deixando-as em desuso.

Vovó continuou por horas, revirando dentro de sua vida somente os momentos felizes. Falou amorosamente sobre meu avô e minha mãe, única filha dos dois, sobre o dia em que se mudaram para casa que vivemos até hoje, sobre a infância de minha mãe e seus brinquedos preferidos. Havia momentos em que ela fazia breves

pausas, e olhava fixamente para o nada, mesmo que aquilo fosse o tudo. Era quando seus olhos se umidificavam. Fui percebendo que ela manobrava seus pensamentos, conduzindo-os apenas para as boas lembranças, apenas para os momentos felizes.

Levei muito tempo para perceber que Vovó nunca reclamara de nada em sua vida. Jamais se queixou de sua sorte, de seus infortúnios, de suas perdas, das dores que rangiam através de suas articulações. Se havia alguma tristeza, alguma mágoa, ela deveria guardar com fecho hermético, dentro do pâncreas.

Acredito que Vovó tenha feito essa escolha – conforme conduzia sua vida, à passos agora lentos, deixava pelo caminho tudo aquilo que não lhe remetesse a bons sentimentos. Em algum momento, compreendeu que sua idade não permitia carregar pesos.

A inexperiência da juventude, não me deixou compreender, naquela mesma tarde todos os pequenos- grandes ensinamentos de minha avó. Esse processo se deu lentamente, conforme a maturidade se aprochegava pesando em meus ossos.

Agora, sem a presença de vovó Esmeralda, sempre a alguma tristeza me manda notícias, retorno para aquele dia. Com as xícaras herdadas, me sirvo de doses de camomila, erva-doce, capim-limão ou, quase sempre, de alfazema, enquanto manobro meus próprios pensamentos, os conduzindo apenas para as lembranças dos momentos felizes.


SOBRE MABELLY VENSON
Formada em Matemática e Gestão Escolar, participou de extensões universitárias na área de educação, literatura e cultura. É especialista em Livro, Literatura e Leitura pela Universidade Estadual de Ponta Grossa e aperfeiçoou-se em literatura infantil e em processos de edição para livros infantis e juvenis. Escreve profissionalmente desde 2017 em blogs e revistas digitais, tendo textos publicados na Revista Vida Simples, Cult e Portal Geledés. Tem escrito livros de literatura infantil, contos e poesias. Participou como organizadora e coordenadora de projetos educacionais voltados para literatura, como o Projeto Leituraço e Cem Anos da Passagem de Santos Dumont pelas Cataratas do Iguaçu.